quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Amanhã

 




no ciclo das luas 

deixei passar os dias,

ainda há pouco ouvi-te dizer

que não conseguias dormir,

as dores laminares puxavam-te as pernas,

para um poço negro sem escada de céu.


com trisreza na voz 

e memória rouca,

falámos das proezas

dos médicos

dos anjos

dos amores

e tu dizas: "liga-me quando quiseres!"


"amanhã ligo"

dizia eu para as minhas unhas sujas

pelas crostas arrancadas ao cicatrizar,

adiava o telefonema para falar da fé, da ciência

dos remédios milagrosos por inventar.


partiste ontem.

combateste uma muralha quase intransponível, 

foste vitoriosa, imprevisível e corajosa.

como o vazio que floresce amanhã.



Para a minha Tia Edite.




terça-feira, 19 de agosto de 2025

Contos de Oscar Wilde



Aconselho a quem tenha filhos pequenos a leitura destes contos antes de dormir, ou melhor, a qualquer hora do dia ou da noite. Todos os motivos são bons para se iniciar uma leitura de um livro único como este. Como não tenho filhos, nem pequenos nem graúdos, eis o motivo do meu conselho, porém muito mal explicado. 

Ah! Se fosse possível voltar atrás no tempo...

Quando era petiz, este era o livro que eu gostava que me tivessem lido na comunhão entre pais e filho. Tal não aconteceu porque na altura as posses não eram muitas para se gastar com livros. Havia outras prioridades como a comida na mesa, cama e roupa lavada. Hoje tive a sorte de puder pegar neste livro e dedicar-lhe tempo. Durante 220  páginas habitei histórias fantásticas percorrendo de vigília caminhos estranhos e desafiantes. Depois da leitura surgiu a rendição, a calma com que aceitei o final do dia e entrei na esfera do irrepetível. 

Talvez sejam contos para crianças grandes, crianças adultas mais rabugentas do que as crianças pequenas. A leitura rejuvenesce o cérebro e convida-nos a ouvir uma outra voz - a voz que lê, a voz que embala. 

Na moral o bem nem sempre vence. O que é bom. O mal é também é um participante e muitas vezes vencedor na maratona da nossa vida. Perdi-me tantas vezes no corpo destas páginas e encontrei-me em várias geografias, fazendo parte das coisas inanimadas ou de reinos improváveis. 

Ouvi o lamento de um fantasma honesto e de um arrogante foguete a reclamar da sua sorte dentro de uma poça de lama. Andorinhas a atrasarem o seu voo migratório de regresso de uma missão inaudita. Um gigante egoísta que ganha o seu lugar no Paraíso. Nestas leituras, os pintarroxos e rouxinóis são obreiros de feitos incríveis. As fábulas ganham contornos verossímeis. Como por mágia literária, as estátuas e as ratazanas obtêm voz própria, tal como o vento, o granizo e a neve. E não acaba por aqui o festim de ficções; as árvores envaidecidas enchem-se de crianças nos seus ramos cimeiros para celebrar a primavera. Ao dobras o vinco da página, ouvi relatos da beleza que foge do corpo de um homem e que regressa quando ele assume a humildade da finitude. Nestas páginas escutei o canto da sereia com que um homem se enamora e pelo qual é capaz de quase tudo. Comovi-me no conto onde o Amor de um filho em busca da Mãe é levado à provação máxima. Os Contos de Oscar Wildeo acompanharam-me em estranhas horas de longos dias, de luar turquesa, porque serena é a voz que da leitura ao espelho. 






domingo, 27 de julho de 2025

Agrafador

 




os ferozes agrafadores (Agrafium agrafadis) estão ameaçados!

todo aquele mecanismo de unir papel com metal

acto rápido, resma perfurada de um lado ao outro,

por um gancho metálico, está em risco de desaparecer!


existe um ser mandibular que reverte esta operação.

também ele encontra-se ameaçado de extinção,

 o tira-agrafos  (Ex agrafium ex)) ocupa o lugar de foragido.

de um papel que já não se quer ver unido.


restam poucos destes excelentes metálicos mordedores,

encontrá-los na floresta burocrática

é um achado científico fantástico! acreditem...

as buscas continuam entre escombros luminosos de tralha.


após uma operação, o meu ombro foi furado em 4 locais

há falta de melhor, os 18 agrafos foram retirados por uma vulgus pinça.


sábado, 12 de julho de 2025

Florista arrependido



A liberdade em agradar  
da urtiga e da hortelã 
não te faz dobrar a língua 
de arrependimento, pois não?

Olha...

antes fosse a minha boca
o último dormitório possível 
para as vespas órfãs de flor,
pois arrepiar caminho 
é como gastar açúcar no mel.

Por isso... 
nada mais me dói do que a realidade de tantos trevos de quatro folhas.




domingo, 6 de julho de 2025

O Red dos Angry Birds almoçou comigo



Quem jogou Angry Birds? Ora pois bem, esta é a ave que inspirou o famoso Red, tanto no jogo como no filme. Desde a altura em que joguei Angry Birds, tinha a curiosidade de observar este bichinho no seu habitat, tanto pela nostalgia do jogo, mas também pelo comportamento rápido e agressivo que nos foi dado conhecer pelos estúdios de animação. Sendo (Cardinalis cardinalis) uma ave extremamente territorial, escolhem um parceiro para a vida, defendendo a todo custo, fazendo uso do poderoso bico, a qualquer ameaça ou intromissão à estabilidade familiar.


Eu como por ali só passava e deixava passar, simpatizei com a calma com que a ave chegou à minha beira, entretido a debicar, pacificamente, governando a vida o melhor que sabia e podia.


 Toronto | Canadá

quinta-feira, 26 de junho de 2025

Ilha do Sal e a miragem de Fata Morgana

 



Eis uma miragem! Nestas fotografias, podemos observar um terreno árido acompanhado por um lago. Mas não. A água e o lago não existem, trata-se de uma ilusão de óptica causada pela refração da luz. O ar quente do solo permite que a luz se propague mais rápido em contacto com a camada de ar frio mais acima. Ou seja, uma miragem no deserto, fenômeno designado por Fata Morgana. E assim é enganado o nosso cérebro pelo confronto entre as ondas de calor que percorrem o céu e o solo. A norte da Ilha do Sal, Cabo Verde, existe um extenso deserto denominado Terra Boa e é aqui que a sede por algo que nos faz falta turva o olhar.








sexta-feira, 13 de junho de 2025

O Homem que queria ser atacado por vaidade | Red-winged blackbird




Esta foi uma das aves que mais vi no Canadá. Destemido, confiante, de quando em vez, de peito feito e até agressivo. Numa caminhada por um parque, notei que esta ave atacava as pessoas que passavam no caminho, perto de uma árvore. Estranhei quando um senhor me pediu para tirar uma foto do pássaro bicando-lhe o chapéu, qual cena do filme de Hitchcock. Tirei algumas fotografias ao senhor radiante mediante o ataque do pássaro, quando fui avisado pelos meus amigos da existência de um ninho. O bicho apenas defendia a sua casa. Informei ao senhor de que o seu comportamento não seria o mais correcto, o senhor respondeu que não sabia do ninho e foi-se embora rabugento. O red-winged blackbird (agelaius phoeniceus) não me atacou, mas pedi-lhe, numa linguagem que fica entre o silêncio e o olhar, para que edificasse o seu ninho num local menos frequentado por parvos humanos.





terça-feira, 29 de abril de 2025

O apagão e a memória

 





(Às 11:33 o país apagou-se)


Junto à janela, o rádio a pilhas,

acompanhava as orações

da minha avó, de voz baixa, 

da alma para o dedo,

ao toque do terço de tantas missas.


(Não temos internet, nem telefone!)


A minha avó, era uma mulher sábia,

dona e senhora dos almanaques de borda de água,

sabia as novenas e o nome dos locotores,

de voz solene e radiofónica em onda curta

e quanto à apanha da azeitona, líder de crise da geada. 


(Península Ibérica sem eletricidade)


A minha avó não se deixava enganar 

com as previsões meteorológicas,

nem com as pantominices políticas,

o peixe chegava uma vez por semana,

a minha avó nunca andou de avião.


(11 horas sem eletricidade, país incomunicável)


O candeeiro a petróleo e a lareira amarela

albergavam gatos adormecidos na lenha seca,

as torradas, o café da manhã, e a tenaz viva 

removiam as cinzas e avivavam o fogo cansado,

lá fora, a necessidade roubava cor às rosas.


(O apagão não apaga a memória daqueles que já partiram)


 



terça-feira, 22 de abril de 2025

Apenas Francisco



O choro dorido dos sinos da igreja

anuncia a partida do Homem Bom,

entre Todos os outros, este respirava branco paz, 

sorriso desafiante de esperança e fé na humanidade.


este Homem rezou e pediu perdão por nós

e nós não aprendemos com a vergonha das guerras,

nem com os ensinamentos da história,

e entregámos a ordem do mundo a loucos.


Será que estamos orfãos de luz?

sente-se o sabor da lágrima na chuva,

um dia depois dos céus da Páscoa,

renasce das pedras livres, apenas Francisco!





domingo, 20 de abril de 2025

365 dias depois da tua partida






Um ano depois,

não houve dia que não rememorasse

as nossas voltas, os diálogos nocturnos,

a complicidade do olhar entre o café matinal.


Mãe, por aqui, as flores desafiam ritmos,

continuo a governar a vida,

às vezes sem vontade nenhuma, outras...

com a pressa de incendiar a boca com o teu nome.


Indelével, nada apaga a tua falta,

nem as paredes caiadas de novos alfabetos 

nem o piar mecânico do relógio de cama,

muito menos os comprimidos para adiar o desespero.


Hoje, na paz do cemitério, só se ouviam

as orações do vento e o cantar primaveril da saudade,

até que chegou uma senhora perto de mim e disse:

"Fique com Deus e boa Páscoa!"


humildemente retribui levantando-me deste chão.








sexta-feira, 21 de março de 2025

Tempestade Martinho





 Os pássaros bem avisaram,

ao uivo da tempestade

38 anos de raízes

seriam arrancadas do chão.

 

a árvore tombou

e com ela a torre de líquenes,

as folhas em forma de barquinho

não impediram o naufrágio dos bichos.

 

aprendi a amar janelas 

com árvores de chá para além das nuvens,

hoje, cortaram em pedaços o tronco,

ramos, braços, uma lasca do meu coração.

 

junto ao caixote do lixo do bairro,

amontoaram os ramos do cadáver desprezado,

os melros vestidos a rigor piavam e piavam

até ser noite outra vez.


sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Esgravatar





O húmus remexido pelos tordos

ilumina o rasto das centopeias maria-café 

pelos escombros da terra húmida,

aproveito para plantar dedos em sangue


espero que daqui a uma vintena de palmos lunares

nasça um abraço.




quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Uma chamada que um dia chegará

 

Dificilmente ligarás do outro lado da morte

mas mantenho o aparelho ligado e com carga

suficiente para te ouvir dizer:

"bom dia, vou fazer sopas de café com leite."


quando o teu telemóvel extremece 

espero que me digas - "vê-lá quem é!"

entretanto, acumulam-se alertas e mensagens, 

promoções fantásticas e viagens.


deste lado respiro o teu número vivo

prolongamento deste fio de espera

até que nada mais seja necessário

sem corpo nem tempo seremos tudo.









10 meses depois da tua partida, minha querida Mãe!





sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Ar

 


Balões de ar quente puxam-te pelo cabelo

aves necrófagas elevam-te e esticam-te os braços

um dirigível fantasma rasga-te o canto da boca

flutuas na atmosfera o tempo necessário para cair

sejas tu sorriso ou canto de lágrima.




sábado, 4 de janeiro de 2025

Idade não é um posto


Nemoptera coa



Os biólogos afirmam que o tubarão-da-gronelândia pode viver mais de 400 anos. 

Este vertebrado atinge a maturidade sexual com 150 anos.

Por outro lado, a efémera, para além de ser um lindo insecto, vive apenas umas horas. 


Estava a pensar nisto, sendo eu um trabalhador por contra de outrem,

enquanto calculava a idade da reforma das abelhas obreiras.


Desisto. Desisto do tempo mas sei que Ele não desiste de mim.


Amanhã

  no ciclo das luas  deixei passar os dias, ainda há pouco ouvi-te dizer que não conseguias dormir, as dores laminares puxavam-te as pernas,...