segunda-feira, 11 de maio de 2020

Parque Nacional Sous-Massa - Marrocos


16 de Maio de 2019  - Deixámos Agadir a pensar no fado lusitano e rumámos em direcção ao Parque Nacional Sous-Massa. 

Ao sair de uma rotunda, um homem de rosto patusco e com pouco mais de 50 anos acenou-nos. Parámos o carro e o homem aproximou-se ostentando um colete e um cartão de guia da natureza. De sorriso afável, voz sibilante, perguntou-nos se estávamos interessados num guia para visitar o parque. Nós respondemos que sim. Pretendíamos alguém conhecedor da biodiversidade local, que nos pudesse ajudar a encontrar certas aves, o que de outra forma seria mais complicado. Ele anuiu confiante e convidou-nos a segui-lo. Assim tínhamos encontrado o nosso guia devidamente certificado. Sem demoras, lá fomos nós atrás de uma lambreta ruidosa que cortava as curvas de forma errante. Quando chegámos, o guia estacionou a sua lambreta infernal e cumprimentou um outro homem mais velho que estava sentado à porta do parque. Trocaram palavras que não compreendemos e olharam para nós como se fossemos um troféu que era importante cuidar. Logo após algum gesticular, o homem mais velho desapareceu nas ondas de calor e nós entrámos confiantes sem fazer muitas perguntas. A primeira ave que fotografámos foi o rabirruivo-mourisco, sempre observador dos nossos passos e muito curioso. 

Calor e areia. A única sombra disponível era fornecida por duas árvores tão belas quanto fantasmagóricas que tombavam das suas raízes animalescas. Volvidos alguns passos, a vegetação passou a ser quase toda ela composta por arbustos espinhosos e cactos rasteiros que se entrelaçavam numa massa intrincada de vasos cerebrais de um animal único. Subimos uma ravina e deparáramo-nos com o serpentear do rio Massa, desenhando pequenos vales de vegetação convidativa à avifauna. Para nosso gáudio, foi nesse instante que contemplámos, com ajuda do nosso guia, o vistoso picanço-assobiador, aos pulinhos entre a vegetação espinhosa e o solo. Registámos a ave sempre com um fundo bastante distractivo, contudo não havia outra maneira para isolar o picanço do seu habitat terrestre. Não era possível melhorar, nem tínhamos tempo para isso. Ficámos contentes com as fotografias possíveis. Como tal, objetivo alcançado! Brindámos ao sucesso momentâneo com efusivos gestos que os humanos comungam e dos quais os bichos fogem. Demos mais umas voltas e deparámo-nos com uma rola-dos-palmares que parecia hipnotizada, deixando-nos aproximar razoavelmente. Por fim, fotografámos em voo os abelharucos que traziam no bico o infortúnio de algumas abelhas. Saímos do parque e desta feita e guia entrou connosco no carro com a promessa de nos mostrar as aves que almejávamos observar. 

Tratámos o guia com uma certa deferência de informador privilegiado em terrenos desconhecidos. Este homem não era pessoa de muitas falas, apenas sorria quando não percebia o que dizíamos com ar descontraído e simpático. Pareceu um homem simples e conhecedor da sua profissão. O resto da viagem foi silenciosa e calma. O guia olhava para as mãos queimadas pelo sol impiedoso, nós olhávamos para as dunas e para uma estrada que parecia despedaçar o horizonte.
 
O silêncio só foi interrompido pelas nossas exclamações de regozijo ante o aparecimento de uns camelos numa peregrinação pela paisagem. Ficámos animados por estas irrupções desérticas como sinal de vida e surpresa. Os camelos aproximavam-se do carro e nós respondíamos como se eles percebessem o nosso contentamento. Talvez a linguagem seja uma ilusão que nos vai dificultando os afectos. Rimos. Apontávamos para o Livro das Aves que ilustrava os nossos próximos objectivos. O nosso guia sabia o que nos queríamos e sem demoras rumámos às praias do litoral. 

Após alguns quilómetros por entre estradas razoavelmente alcatroadas entrámos numa zona de areal e por detrás de uma duna encontrámos um enorme bando de ibis-peladas. Saímos do carro e as aves levantaram voo mas regressaram ao mesmo local, o que permitiu algumas fotos em voo e também alguma aproximação. Com os cartões cheios da estranha beleza das íbis-peladas, partimos em direcção ao saudoso Atlântico em busca do garajau-pequeno. Antes disso, tivemos ainda a sorte de encontrar algumas pegas-do-Magreb na sua demanda por alimento. 

Já na praia calcorreámos o areal e volvemos as dunas com o vento agreste a esbofetear a nossa indómita teimosia. Até que se ouviu um grito de bom prenúncio: "Estão ali os garajaus-pequenos!" Eu, o zarolho de serviço, apenas vi umas quantas aves marinhas junto ao areal molhado. Decidi fotografar o bando mas estava muito longe. Não nos demos por satisfeitos e o resiliente guia ajudou-nos a chegar mais perto dos bichos com astúcia de quem sabe contornar as dificuldades. Por fim, durante vários minutos escondidos atrás de um montículo de vegetação dunar, fotografámos dois bandos misturados de garajaus-pequenos e garajau-de-bico-preto. Ficámos satisfeitos e voltámos para o carro. As pernas não se queixaram e o dia corria bem. Quando chegámos à viatura o nosso guia decidiu ausentar-se para orar, e nós respeitámos obviamente esse momento. 

Depois fomos almoçar a um restaurante também sugestão do nosso solícito anfitrião. A refeição foi deliciosa como sempre, as tagines, o pão, os doces, os chás, um manjar de requinte e simpatia. De barriga cheia e objectivos fotográficos alcançados, levámos o nosso guia até onde tinha deixado a sua lambreta. Durante a viagem, reparei por várias vezes, nos olhares dos locais em torno da nossa viatura. Podia ser mania da perseguição ou qualquer outro tipo de pensamento persecutório. Todavia, fiquei com a sensação de que uma rede de "guias de natureza" observava os nossos movimentos. Parámos o carro ao lado da lambreta infernal. Chegou a hora de pagar o merecido desempenho do nosso homem e mais uma vez afirmo sem ele, seria quase impossível realizar algumas destas observações. Contudo, ficou por fazer a pergunta essencial. Nós nunca questionámos quanto custaria aquele serviço de observação de aves. Talvez por incúria, quiçá descontracção, porém, não fizemos a questão das questões: QUANTO Custa? 

Por isso demos o que achámos justo. O rosto do guia mudou, de olhar afiado e voz áspera, caiu a máscara do homem afável de até então. Passámos a lidar com a ganância de quem queria um quantia exorbitante. Exigindo sempre mais e mais dinheiro, dizendo:  Vocês viram todas as espécies que queriam, portanto paguem-me!

O guia nunca nos disse quanto importaria os seus serviços e nós fomos levados pela sua simpatia e pela voz de embalo de cartomante. Sempre ouvi dizer: "ninguém dá nada a ninguém" e "não há almoços grátis". Com os nervos em fogo, não quisemos alimentar mais conversa nem discussões que poderiam descambar em algo indesejável. Estávamos em vantagem numérica, todavia não valia a pena qualquer altercação e demos quase todo o dinheiro que tínhamos. Não sabíamos quem estaria a observar, nem que repressões poderíamos vir a sofrer. Fizemos cara má (como se isso valesse de algo) e acenámos com a cabeça. Toma lá e sai daqui!

Bem… O homem não levou o dinheiro que quis mas levou mais do que nós estaríamos dispostos a pagar. Agarrou na mota e no saco com a refeição oferecida pelo restaurante (por ter angariado mais uns clientes) e desapareceu nas ondas infernais da sua lambreta. Se foi o preço justo não sei. Existem "chicos-espertos" em todas as geografias. É a lei da sobrevivência! Que lhe faça muito proveito! Que o dinheiro não lhe sirva para comprar anticoagulantes. Nós ficámos com a memória destes estilhaços para contar. 

A pose exótica da pega-do-magreb (Pica mauritanica), cujo olhar poderia ter sido desenhado a lápis-lazúli





O general rabirruivo-mourisco (Phoenicurus moussieri) sempre atento às movimentações dos bichos maiores que por ali passam.





A rola-dos-palmares (Streptopelia senegalensis) quase não deu pela nossa presença, o que permitiu chegar mais perto, mas não lhe conseguimos ver a cauda. Acontece.




À saída do parque assistimos aos voos insistentes dos abelharucos, infelizmente em busca de alguns insectos essenciais ao ecossistema.


Justiça seja feita... Nunca encontraríamos o picanço-assobiador senão fosse o nosso guia!




Vá lá! Uma pose mais interessante mas durante pouco tempo. Depois o picanço-assobiador cansou-se de ser o centro as atenções e desapareceu dentro de um labirinto de picos.


Dramático em tonalidades cinza, o mocho-galego (Athene noctua) quase passa despercebido no meio dos cactos e arbustos.


Os cactos são uma paixão antiga. 
Como tal, é um privilégio ter a oportunidade de fotografar estes amigos espinhosos no seu verdadeiro habitat.


A simplicidade de uma pequena árvore tão resiliente quanto os picos que silenciam o vento do queixume do deserto.


As raízes e o tronco que se movem na secreta comunicação da seiva.


O emaranhado cerebral desta composição de cactos - tão forte como os espinhos inquebráveis do tempo.



O sereno caudal do rio Massa.


O voo e o fascínio pela fealdade das ibís-peladas (Geronticus eremita).


Como é relativo o signo da beleza e do feio!
 Neste caso, a íbis tenta manter em forma as penas e o sentido estético do lado que mais a favorece.


Não precisamos de ser bonitos, intelectuais ou populares para pensar a vida como uma viagem.


Em todo lado havia uma escrevedeira-doméstica-do-sará (Emberiza sahari) pronta a alegrar o dia.



O fruto do argan e os seus múltiplos usos é explicado pelo Luis Arinto no vídeo desta viagem.


Entre dunas - um pormenor da flora local.


Enterrado os pés na areia no caminho até ao imenso Atlântico. 


Ovos de uma ave marítima - referenciado para não ser pisado.


O voo dos tão desejados garajaus-pequenos (Thalasseus bengalensis) misturados com os garajaus-de-bico-preto (Thalasseus sandvicensis).




No areal as aves assistem à fúria do mar e aos desafios que se anteveem. 



Quando a barriga começa a dar sinais, eis chegada a tão desejada hora da paparoca com muito tempero. 
Altamente recomendável!


No pátio do restaurante esta tartaruga arrastava a sua carapaça.
Ainda tentei uma aproximação amistosa, espreitei pelo postigo, disse olá, contudo não me ligou nenhuma.


Entrámos no restaurante típico. Nas paredes era exibida a indumentária local - cor que verdadeiramente me agrada. 



Antes das "tagines" foi servido um pão delicioso, tudo bem regado com água fresquinha!



Foto de grupo dos viajantes!







Agradecimentos:

Ana Frade
José Frade
Luis Arínto



quinta-feira, 7 de maio de 2020

Dia Mundial da Língua Portuguesa

Poema talvez não tanto. No passado dia 5 de Maio arranjei uma maneira para comemorar  o primeiro Dia Mundial da Língua Portuguesa! 

rabo-de-fogo

abriam-se janelas de nuvens pardas,
ao céu envidraçado deste confinamento,
no parapeito manchado de espera,   
seguia aquele adejar de contentamento. 

um rabo-de-fogo emplumado             
feito pássaro negro-cinza dos infernos,
bicho de tiques modernos,
irrequieto e de fogo de pena arruivada,
brincava de poiso em poiso
em cabriolas de cauda empinada.

de cantar estranho quase alienígena,
como quem desfaz esferovite com a mão
alegrava deste a primeira à última manhã,
este pequeno quarto de cabeça coração.

o bicho queria lá saber do outro bicho pandémico
o que ele almejava era papo cheio, pouso altaneiro
e brio na asa;
enquanto eu contava entre a cova dos dedos,
as árvores que me faltavam abraçar.

ele esfarelava, esfarelava a esperança, 
urgentemente nervosa do desconfinar.




05|05|2020





M22

  Uma lágrima faz estremecer o vinco do lençol imaculado como uma flor ainda sem nome, há dias em que as palavras são audíveis rasgos ...