quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Leitura Portátil: A Peste - Albert Camus

 



Quando acabei de ler este livro já tinha tomada a terceira dose da vacina contra a covid. Ainda não apanhei o vírus. Nem sei como, se calhar já apanhei e não dei por isso - hipótese improvável.  Continuo a ir para o trabalho de metro, máscara posta,  permanecer 8 horas de boca tapada com outra máscara, mesmo que seja o único  a fazê-lo no "open space" sem divisórias, com mais de 50 pessoas em distanciamento social suspeito. Viva o ar condicionador causador de tantas maleitas em anos anteriores! Se calhar sou o maluquinho persecutório lá do sítio com  a mania da perseguição viral. É bem provável! Porém, quero continuar a trazer todos os dedos para casa, com a mínima culpa, desejando ser apenas um veiculo portador de mais um dia feito e um livro por ler. Não estou livre de nada. Há quem diga quem não apanhou o bicho é porque não tem amigos. Tenho amigos e a maioria deles já apanharam covid. Virgem pestifero até quando não sei!

Este livro dos anos 40 do século passado é e será um tratado visionário de um vírus que mudou geografias e realidades sociais. Não vou falar das personagens, nem das suas interações, deixo isso para a vossa leitura. 

Esta peste (similar à peste do livro) tornou-nos mais virados para os fósforos que ardem no nosso umbigo. Mais solitários e pequeninos mas capazes de coisas grandes. Perdemos, de forma directa ou indirecta, aqueles que amávamos e não vimos partir aqueles que só conhecíamos por serem longínquos e silenciosos, contudo presentes nas rotinas abandonadas. As cidades tornaram-se desertos, as casas casulos de exilados em teletrabalho. Os hospitais lotados, as ambulâncias à espera para entregar os doentes, as filas nas farmácias e nos supermercados, tudo a abarrotar de urgência. A perda do rosto e do sorriso em esboço de gaze. A condensação húmida da nossa fala contra o vidro da janela, fumegava desejos de que isso acabasse já. 

Será que aprendemos? Outro vírus se prepara, outra guerra, seguida de inflação. Somos peritos em repetições históricas dos nossos fracassos.  Este livro é uma impressão digital de uma sociedade  obliterada por uma desconhecida peste. Outras pestes viram e com elas novos desafios de mudança de pele humana, 

Mais do que retratos agonizantes ou frases bonitas, eis algumas passagens que serviram de espelho à realidade covid : 

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63 - As casas dos doentes deviam ser fechadas e desinfetadas, os que as rodeavam submetidos a uma quarentena de segurança, os funerais organizados pela cidade nas condições que adiante se verão.

66 - (…) um novo decreto proibiu a troca de qualquer correspondência, a fim de evitar que as cartas pudessem evitar um veiculo de infecção. 

68 - (…) a primeira coisa que a peste trouxe aos nossos concidadãos foi o exílio.

70-  Na maior parte dos casos o exílio era em casa

75 - (…) as pilhas solitárias de barris ou de sacos testemunhavam  que o comércio também tinha morrido de peste.

104 De longe em longe estalavam os tiros das brigadas especiais encarregadas de matar cães e os gatos, pois estes poderiam transmitir pulgas.

106 - Esta peste era a ruína do turismo.

147 - A única maneira de lutar contra a peste é a honestidade. 

150 - pessoas regressadas de quarentena e que,  enlouquecidas pelo luto e pela desgraça, deitavam fogo às suas casas, na ilusão de que lá faziam morrer a peste.

152 -  A única medida que pareceu impressionar os habitantes foi a instituição da hora de recolher . A partir das onze horas, mergulhada na noite completa, a cidade era de pedra.

153 - (…) o cortejo fúnebre tinha sido suprimido. Os doentes morriam longe da família e tinham sido proibidos os velórios rituais.

180 - De cada vez que um deles falava, a máscara de gaze inchava ou ficava húmida à altura da boca. Isso tornava a conversa um pouco irreal, como um diálogo de estátuas. 

204 -As formas pulmonares da infecção que se tinham já manifestado. multiplicavam-se agora nos quatro cantos da cidades, como se o vento provocasse e alimentasse incêndios nos peitos. 

218 - (…) num minuto de distração, a respirar para a cara de outrem e a transmitir-lhe a infecção.

249 - Tudo o que homem podia ganhar no jogo da peste e da visa era o conhecimento e a memória.

257 - Sabiam agora que, se há qualquer coisa que se pode desejar sempre e obter algumas vezes, essa qualquer coisa é ternura humana. 



Terminei de ler este livro a 30-03-2022


domingo, 7 de agosto de 2022

mundo 0-1

 

quando morre um poeta

a guerra engalana-se faustosa,

a fome veste-se de ganância,

a solidão despe-se órfã de página. 


quando morre uma criança

as árvores abraçam os céus com raízes,

as flores precipitam-se no lume perfumado 

a tua boca chora para sempre 


um novo mundo perdido.




Homenagem à criança que faleceu durante  o rali vinho da Madeira. e para a Poeta Ana Luísa Amaral.







terça-feira, 2 de agosto de 2022

A casa que nunca foi tua

 



os corpos que visitaram esta casa,

deixaram no pó, a queda dos sorrisos,

atrás das portas, escondem-se bichos,

rivais solitários nesta gaiola de grilos. 

 

as sombras que ocuparam este quarto,

reclamam o amor rarefeito pela extinção da cor,

aceitam a confissão de que sozinhos somos maiores

que o espaço por ocupar desta área de vácuo.


quando estou aqui sou proprietário desta dor,

feita da caliça e da humidade com que me alimento,

quando me certifico que a luz ficou apagada e a porta calada,

então, há todo um monstro de plasticina que se anicha no adeus.


sem que nenhum de nós abra as cartas a tempo,

volto 15 dias mais tarde para regar as imitações de deserto.



M22

  Uma lágrima faz estremecer o vinco do lençol imaculado como uma flor ainda sem nome, há dias em que as palavras são audíveis rasgos ...