quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Subir



Mais parecia um vulcão branco no meio de um lago e eu tão pequeno para lá chegar.
Naquele tempo a cama de ferro do quarto de dentro era tão alta, que mal a via, mesmo que me colocasse em bico de pés. De tal forma que o meu nariz ficava a rasar a colcha e os meus olhos nivelados pelas franjas de lã. Eu bem tentava ser sentinela binocular numa íngreme conquista mas por vezes era difícil.

Não era difícil ser neto, filho e puto reguila ao mesmo tempo. Todavia, era problemático dormir a sesta na casa dos meus avós, isto porque tratava-se de uma cama misteriosamente alta, numa divisão inesperadamente escura. Mas fazia por isso, fugindo do sono como do diabo da cruz em direcção aos quintais, depois ninguém me via durante horas. Quando a noite chegava e de pés lavados o caminho era certo. Cama.

A cama alta do quarto de dentro. Para lá chegar tinha que me apoiar na trave lateral e de mãos nos florões de ferro fundido escalava a custo a estrutura rangente de metal. Uma vez lá em cima, e depois de dois ou três pulos para comprovar a resistência do colchão, suspirava de alívio e olhava para baixo, feito homem alpinista tão confiante da minha façanha.

Que vista maravilhosa! Contemplava o estrondoso cume da cama situada no quarto dos fundos e a fabulosa visão que me proporcionava. O fio da noite, os passos breves que faziam levantar os tacos antigos, o ranger de madeira numa oração frágil, as crateras de cal que caíam das paredes numa excêntrica cadência, a mesa-de-cabeceira que tinha voz própria numa gaveta de palavras roucas, o cheiro proveniente da lareira que se propagava pelas brechas das horas numa neblina cinzenta, e mesmo ao lado, a sala dos meus avós que por serem avós nunca estavam na sala de estar, uma divisão nos fundos suspensa por um candeeiro a óleo feito lâmpada mágica, protegida por dois lobos de loiça que pareciam ferozes mas que nunca saiam de cima da mesa de jantar. 

Depois caia morto e permanecia imóvel. Mão é assim que se morre? pensava eu. Fechava os olhos e fingia, contudo era descoberto e após uma reprimenda adormecia encantado, numa paz que só está ao alcance daqueles que caem no cansaço da tenra idade.

Muitos adeus depois. Hoje a cama é tão pequena que dormi nela enrolado e às vezes com os pés de fora. 
Quando acordei tinha-me esquecido que subir é uma arte nova e a partir daí é sempre a descer.

Não era preciso tanto

Não era preciso tanto sofrimento, tamanha dor ou insondável medo, para acreditar em Deus, e nos seus caminhos indecifráveis. veredas inscrit...