terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Se um dia a rede cair

 



táctil é o nosso desengano solitário,

na ânsia de consumir a fuga do tempo

vertemos o mundo na unha digital, 

cegos pela luz azul que nos acabrunha. 


caminhamos de palas, 

dentro de ecrãs sonegamos afectos,

rápidos, instantâneos, fantoches,

imitação sofrível de um resquício humano

que se agiganta num frágil tubo de ensaio.


Ah se um dia a rede cair...

quais toupeiras humanas,

à cabeçada na porta dos hospitais,

bibliotecas, museus, matrinidades,

cemitérios, esquadras, pardilheiros, bordeis.

 

tal não será o pãnico mastrubatório em espiral,

na esperança que um android vítreo

nos devolva da senha da rede perdida,

num célere encefálico despropósito, indesculpável.


até lá que me mordam os dedos 

e me destapem o pensamento.


segunda-feira, 16 de novembro de 2020

O torcicolo da minha janela

 
Entre quatro paredes cá estou em teletrabalho fazendo do meu exíguo quarto, escritório, estúdio, refeitório, dormitório e agora abrigo fotográfico. Antes de iniciar a minha jornada de mais um turno, estava a tomar o pequeno almoço à janela, ao mesmo tempo que admirava a luta do sol a tentar furar as nuvens, enquanto os melros gladiavam-se em estridentes vocalizações matinais assustando as outros bichos. No decorrer dessas explosões esvoaçantes, houve uma movimentação que despertou a minha curiosidade. Descendo da "minha árvore" até umas madeiras surgiu uma pequena ave cuja a camuflagem críptica inicialmente baralhou a minha tentativa de identificação. Contudo, quando pousou não restavam dúvidas. Da família dos pica-paus lá estava ele a admirar o espalhafate dos melros e atento às movimentações do gaio. Nunca tinha visto um torcicolo (Jynx torquilla) em Carcavelos e ainda para mais no conforto do meu quarto, desde a minha janela e de pantufas. Liguei o computador e fui trabalhar com um sorriso, o meu espaço de confinamento transformou-se num observatório de aves.





Depois veio o gaio com uma bolota e com mais olhos do que barriga.




domingo, 15 de novembro de 2020

Com finamento

nesta tarde de confinamento

só as trepadeiras ousam sair de casa 

de costas voltadas à árvore que as desafia,

do outro lado, expiamos o vapor da nossa existência,

atrás de uma janela somos máscaras do nosso medo,

frágeis ornamentos de filigrana neste cerco de contágio.


de pés descalços pela ciência o fosso de afectos aumenta,

beijamos com os olhos e acariciamos o vácuo digital,

a comunicação regenera-se no conforto de um aceno familiar,

as notícias ambicionam ser uma nova religião.


perguntamos quantos morreram hoje?

como quem questiona o que é hoje o almoço;

depois disto... diluímos o medo nos números e até...

creio que o vidro e o metal ficaram mais frios

e o sangue mais escuro.


para me entreter...

desenho o que seria um sorriso ou talvez um balão,

mas fico-me por um circulo que ambiciona ser sol:

os livros fecham-se, os estores caem, as luzes cansam-se.

a televisão mete-se na cama comigo, 

enquanto o computador desfaz-me a máscara humana.


nesta tarde...

o bicho  esconde-se num manto de nevoeiro

e vergonha.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

mais uma raridade na Foz do Sizandro

Lá sai eu de máscara no rosto e com algum distanciamento social como dita a etiqueta destes dias, porém entre amigos a distância não é fácil de conservar. Fomos em direcção à foz do rio Sizandro, não sem antes apalavrar e vaticinar os dias do fim do covid 19. Esse era o nosso desejo. Nesta época de pandemia em que a dizimação do vírus parece estar descontrolada, a natureza segue o seu curso, com as suas curiosidades e os seus movimentos errantes e dispersivos. Enquanto isso, os humanos procuram algo que os mantenha vivos e com esperança nos ensinamento que a natureza proporciona. Nem a fúria da chuva nos arredo...u da praia da Foz do Sizandro para ouvir o que este elegante perna-amarelo-pequeno (Tringa flavipes) tinha para contar. Alguns parágrafos e reticências sem luz ou vacina no enublado horizonte ou nada disto... as ondas não se cansaram de desarrumar os segredos guardaddos na areia.










quinta-feira, 24 de setembro de 2020

a triste sina de um ganso-patola

18:00 - Ontem, durante uma caminhada entre a praia das Avencas e da Parede, observei ao longe uma ave marítima que me pareceu ser de grande porte. Acompanhei as movimentações do animal ao longo da costa até que se aproximou dele um surfista, contudo o bicho não demonstrou medo nem fugiu, apenas sacudiu as asas. O sufista desviou-se do animal e apanhou a próxima onda. A ave também foi arrastada pela mesma vaga, até que lentamente chegou às rochas próximo do paredão da praia de Parede.


18:20 a maré a subir, ondulação agitada, e junto à rebentação, a ave eventualmente estaria ferida, pois não conseguia evitar o embate contra as rochas. Assomei-me de um pescador e disse-lhe que estaria ali um ganso-patola em dificuldades, ao que ele retorquiu que seria um corvo-do-mar, juntou-se a nós mais um homem de calção com uma toalha ao ombro. Depois de uma troca de opiniões sobre que ave seria aquela... homem ao mar. O pescador desceu e aproximou-se do bicho e o homem da toalha capturou-o com destreza; eu confesso, fiquei a observar. O animal foi resgatado da zona de rebentação e já no cimento tapamos o ganso-patola com a dita toalha. Foi então que reparei que a ave ainda juvenil não tinha uma pata e tentei obter ajuda. Naquele preciso instante, ao meu lado os nadadores da praia da parede estariam a tentar contactar a policia marítima. 

18:30 Liguei para o Sepna que solicitaram que ligasse também para a polícia marítima ou a para a psp local. Assim fiz. Contactei a polícia marítima mas não atenderam. Tentei a minha sorte junto da psp da Parede e aqui mandaram ligar Associação São Francisco de Assis, liguei mas sem sucesso. Voltei a contactar a psp da Parede, onde me facultaram mais um número da associação, porém o desfecho e a sorte foi a mesma de à pouco. Voltei a telefonar para a psp da Parede e depois de muita insistência da minha parte o senhor agente comunicou-me que iria enviar um carro ao local. Agradeci e compreendi perfeitamente as prioridades, a policia terá ocorrências mais imperativas e urgentes do que esta para se encarregar.

19:30 Um casal de nadadores salvadores acompanhou-me nesta saga e tentaram também eles chegar à fala com a Associação Francisco de Assis e foi então que os informaram que esta associação teria um piquete e que neste momento estaria muito ocupada a tentar capturar um cão raivoso que andava a espalhar o terror em Cascais. Fiquem sem palavras, procurei um ponto no horizonte nocturno para me refugiar.

20:20 Chegou a polícia. O senhor agente destapou o ganso-patola e a ave surgiu de bico aberto pronta para dizer boa noite. Ora com isto, o agente policial informou-nos que a ave não entrava no carro de patrulha e se quiséssemos levávamos o animal até à esquadra que depois o piquete da associação passaria por lá para o buscar. Posto isto, o nadador salvador foi até ao restaurante "o sargo", pediu uma caixa, colocámos o ganso-patola na embalagem e lá foi o nosso amigo até à esquadra na viatura do casal de nadadores salvadores.

O ganso-patola ou alcatraz (Morus bassanus) é a maior ave marítima que cruza as nossas águas durante as suas passagens migratórias.

Boa sorte amigo alcatraz.



Agradeço ao casal de nadadores salvadores, ao pescador e ao homem da toalha pelos seus esforços e camaradagem e aos agentes da autoridade que no local tomaram conta da ocorrência
 
 

terça-feira, 11 de agosto de 2020

na sombra dos teus ramos







meu doce pai de sorriso fácil,

arrasta os pés em direção ao café,

rumo de um relógio certo,

de nada vale, os ralhetes por causa do covid ou da febre,

ele apenas teme que os 84 anos lhe imobilizem as pernas

e não lhe deixem beber uma bica de manhã uma cerveja à tarde

no seu cantinho e pela volta dos pinheiros,

passo a passo, para depois amparar o descanso dos prédios,

com o vagar que só árvores fortes sabem apreciar,

e com isto, lá vai ele de chapéu posto, agarrado à rotina,

enquanto nós engodamos a vida com mais uns comprimidos.

 

minha querida mãe,

em intervalos de sete luas visita as urgências hospitalares,

hoje a lua está cheia de preocupações, agonias, palpitações.

custa-me vê-la a desaparecer nos corredores do hospital,

sem poder fazer nada,

depois do segurança me impedir de passar a linha amarela,

deixei-a ir como uma sombra outonal delicada

a seguir uma linha imaginária indicada pela enfermeira,

para aguardar numa sala pejada de suspiros impacientes.

 

como filho, vê-los assim, arrancam-me o coração pelo boca,

tenho saudades do tempo em que nos julgávamos eternos,

em que tudo era solúvel em nuvens de papel vegetal,

agora sinto-me inconsequente em espasmos verbais,

solitárias implosões de antidepressivos,

sem engenho para moldar-me à melodia do amanhã,


em menino, lembro-me da facilidade com que fazia castelos de plasticina,

naquela altura  era mais fácil sonhar.

contudo, depois de esperar 6 horas nas urgências pela minha mãe,

um rasto de esperança aquece-me as mãos;

enquanto o sensor de movimento das portas do hospital impõe o seu ritmo.



 


domingo, 9 de agosto de 2020

Bufo-real - um encontro inesperado



Nasci assim, míope num grau um tanto ao quanto acentuado e com o passar dos anos tenho reunido outras maleitas que me vão deixando mais conformado e ao mesmo tempo mais conhecedor dos meus limites. De certa forma, é bom saber até onde pudemos ir, e surpreendermo-nos amiúde ao ultrapassarmos algumas barreiras. Como tal, reconheço que não sou um grande observador de aves, muitas vezes não consigo ver aquilo que está a um palmo à frente do meu nariz. Confesso que não penso muito no assunto,  e até gozo com a situação entre amigos, ao ponto de lhes dizer: "se eu não estiver a ver o animal, tirem-me a máquina da mão e fotografem que eu depois cá me amanho e tento descobrir onde está o bicho".  

Para mim estas saídas fotográficas funcionam como terapia social. Alinho nestas aventuras mais pela camaradagem do que pela competição,  obviamente sou apreciador de uma boa fotografia (seja lá o que isso for), contudo, ciente que sou vesgo e mais lento que a minha sombra cansada.

Felizmente, não somos todos iguais. Tenho camaradas de olhar aguçado e treinado que conseguem detectar a mais ténue movimentação  numa árvore. Outros, de velocidade tamanha, dão  passadas mais rápidas do que o meu folgo me permite imaginar. Às vezes até fico a modos que exaurido de os ver a subir ladeiras com a maior ligeireza, enquanto o meu coração me aconselha prudência e caldos de galinha.  

Os meus amigos sabem que estes meus defeitos de fabrico me tornam mais parcimonioso na capitulo da destreza. Por vezes, neste "jogo de esconde-esconde." sou o último a ver e o último a chegar. E com isso estou plenamente consciente do quão amador sou no reino da fotografia de natureza. Todavia, não busco a melhor fotografia do mundo, antes a história do falhanço de uma mera fotografia. Acredito que a luz nos conduza a vários caminhos, o que nos permite várias interpretações ou múltiplas histórias. 

Estou conformado que não vou fazer deste passatempo o meu ganha pão. Pois sei que não é daqui que advém o meu sustento. Todavia, em certos dias, é aqui que vou buscar forças para ir trabalhar laboriosamente a seara computacional. Aqui estou pronto a falhar - Cardiovascular - Miope, a vida é feita de fraquezas, compete-nos a nós lidar com elas, dando a volta ao texto da melhor maneira possível. Daí vem o gosto pela fotografia e a sua capacidade para nos surpreender com o silêncio dos seus intervalos.

 
Ao terceiro mês da pandemia em que pensavas tu naquela tarde?  

"- O impiedoso cerco do covid-19, máscaras, álcool-gel, zaragatoas. Ah sabe tão bem o contacto com a natureza. "

Foi uma autêntica surpresa o que aconteceu naquela tarde na Serra de Sintra. Tínhamos reunido um grupo de amigos para tentar fotografar o rouxinol-do-japão.  Chegámos ao local e calcorreamos veredas de mato fechado em busca do pequeno rouxinol mas apenas o ouvimos (ou pensámos que o ouvimos) no meio de tantas toutinegras e outos piares.  O local estava pejado de libelinhas calopterix-cobre (Calopteryx haemorrhoidalis) que ocupavam as erupções soalheiras das silvas. O calor era muito e a sombra bem vinda o que me deixava sequioso por descanso. Fizemos mais de seis quilómetros entre risos e teimosias em busca de uma pequenina ave. Não a vimos. Antes de darmos por concluída a nossa busca observámos um açor (Accipiter gentilis) a voar sob nós sem piedade pelo nosso irremediável espanto. O açor passou por entre árvores, tirei três fotografias e mais não consegui.

Seguimos em frente, para admirar as manobras de distração de um bútio-comum (Buteo buteo) com intuito de afugentar do seu território potencias predadores. Procurei o significado da sombra perto de umas árvores de ramos tortos e fantasmagóricos. Achei piada a curvatura do tronco quase fêmea.  Porém, havia algo que não estava dentro do espectável. Um relevo estranho desafiava qualquer protuberância ou o seguimento natural do  tronco. Não podia ser... ainda para mais mexia-se! Aquela massa críptica acastanhada perscrutava os meus movimentos em suaves rotações. Não acredito... com dois pontos brilhantes assemelhando-se uma lanterna viva que quase obrigava a árvore a curvar-se. Não era o tronco que se movia mas sim uma majestoso criatura. Intrigado com aquele composto árvore-bicho aproximei-me e foi nesse instante que constatei o que me era dado a observar em homenagem a todos os míopes turbulentos .

A uns escassos 5 metros, um bufo-real (Bubo bubo) perscrutava as minhas intenções.  Fiquei sem fôlego.  Tirei duas fotografias com medo de o afugentar e gesticulei para chamar os meus companheiros. Inicialmente ninguém  percebeu. "O que estará ele para ali a acenar?" Eu esbracejava, tentava comunicar sem grandes espalhafate e quando abria a boca... As palavras eram articuladas num  estranho código onde comia vogais e esticava consoantes O primeiro amigo a chegar não conseguiu ver o animal, enquanto eu repetia: "ali, ali, na terceira árvore à tua frente". Não sou a melhor pessoa para das indicações e tirei-lhe a máquina da mão disparando suavemente. O bicho não se incomodou com as nossas hesitantes figuras. Chegou mais uma amigo que conseguiu descortinar o animal bem camuflado no tronco da árvore. E foi esse companheiro que direcionou o olhar do primeiro para que todos víssemos a sua majestade bufo-real, uma das maiores aves de rapinas nocturnas da europa. O bicho deixou-se fotografar até filmar, para depois se cansar com a nossa inépcia para revelações cinematográficas e debandou sem se ouvir uma folha cair. 

Olhámos uns para os outros e não nos abraçamos por que a pandemia não deixou. Parecíamos putos que tínhamos ganho um berlinde abafador e que agora o mundo do faz-de-conta passaria a ser nosso. Para comemorar a nossa tremenda sorte esquecemos o rouxinol-do-japão e fomos beber uma cerveja, celebrando assim este momento inesquecível em estranhos tempos de viros e confinamento também ele cerebral.

O misterioso bufo-real na encantada Serra de Sintra.









terça-feira, 28 de julho de 2020

um adeus a um amigo

é de difícil aceno
o adeus desta hora,
relembro
aqueles turnos que desfizemos juntos,
onde sabíamos de cor o horário das fogueiras
e com eles fizemos nossas brincadeiras,
na forma como do trabalho escrevemos
camaradagem.

é sempre um adeus incompleto,
este esgar que nos arranha a garganta
arrasta-nos de braços juntos para a queda;
o olhar fica no traço dos céus,
nas noites e nas madrugas,
nos cafés poema e nas estradas,
dos jogos que ficaram por desafiar,
até aos níveis de sorrisos que estão por completar.

no rasto das nuvens oiço as tuas piadas 
que por serem secas têm mais graça,
porque és tu que as dizes em relâmpago comédia
meu afável amigo...
não temos noite nem dia por hoje
e tudo o que ficou por fazer...
inscreve-se no teu sorriso com que dizes até já.





para o Alvarinho.





segunda-feira, 11 de maio de 2020

Parque Nacional Sous-Massa - Marrocos


16 de Maio de 2019  - Deixámos Agadir a pensar no fado lusitano e rumámos em direcção ao Parque Nacional Sous-Massa. 

Ao sair de uma rotunda, um homem de rosto patusco e com pouco mais de 50 anos acenou-nos. Parámos o carro e o homem aproximou-se ostentando um colete e um cartão de guia da natureza. De sorriso afável, voz sibilante, perguntou-nos se estávamos interessados num guia para visitar o parque. Nós respondemos que sim. Pretendíamos alguém conhecedor da biodiversidade local, que nos pudesse ajudar a encontrar certas aves, o que de outra forma seria mais complicado. Ele anuiu confiante e convidou-nos a segui-lo. Assim tínhamos encontrado o nosso guia devidamente certificado. Sem demoras, lá fomos nós atrás de uma lambreta ruidosa que cortava as curvas de forma errante. Quando chegámos, o guia estacionou a sua lambreta infernal e cumprimentou um outro homem mais velho que estava sentado à porta do parque. Trocaram palavras que não compreendemos e olharam para nós como se fossemos um troféu que era importante cuidar. Logo após algum gesticular, o homem mais velho desapareceu nas ondas de calor e nós entrámos confiantes sem fazer muitas perguntas. A primeira ave que fotografámos foi o rabirruivo-mourisco, sempre observador dos nossos passos e muito curioso. 

Calor e areia. A única sombra disponível era fornecida por duas árvores tão belas quanto fantasmagóricas que tombavam das suas raízes animalescas. Volvidos alguns passos, a vegetação passou a ser quase toda ela composta por arbustos espinhosos e cactos rasteiros que se entrelaçavam numa massa intrincada de vasos cerebrais de um animal único. Subimos uma ravina e deparáramo-nos com o serpentear do rio Massa, desenhando pequenos vales de vegetação convidativa à avifauna. Para nosso gáudio, foi nesse instante que contemplámos, com ajuda do nosso guia, o vistoso picanço-assobiador, aos pulinhos entre a vegetação espinhosa e o solo. Registámos a ave sempre com um fundo bastante distractivo, contudo não havia outra maneira para isolar o picanço do seu habitat terrestre. Não era possível melhorar, nem tínhamos tempo para isso. Ficámos contentes com as fotografias possíveis. Como tal, objetivo alcançado! Brindámos ao sucesso momentâneo com efusivos gestos que os humanos comungam e dos quais os bichos fogem. Demos mais umas voltas e deparámo-nos com uma rola-dos-palmares que parecia hipnotizada, deixando-nos aproximar razoavelmente. Por fim, fotografámos em voo os abelharucos que traziam no bico o infortúnio de algumas abelhas. Saímos do parque e desta feita e guia entrou connosco no carro com a promessa de nos mostrar as aves que almejávamos observar. 

Tratámos o guia com uma certa deferência de informador privilegiado em terrenos desconhecidos. Este homem não era pessoa de muitas falas, apenas sorria quando não percebia o que dizíamos com ar descontraído e simpático. Pareceu um homem simples e conhecedor da sua profissão. O resto da viagem foi silenciosa e calma. O guia olhava para as mãos queimadas pelo sol impiedoso, nós olhávamos para as dunas e para uma estrada que parecia despedaçar o horizonte.
 
O silêncio só foi interrompido pelas nossas exclamações de regozijo ante o aparecimento de uns camelos numa peregrinação pela paisagem. Ficámos animados por estas irrupções desérticas como sinal de vida e surpresa. Os camelos aproximavam-se do carro e nós respondíamos como se eles percebessem o nosso contentamento. Talvez a linguagem seja uma ilusão que nos vai dificultando os afectos. Rimos. Apontávamos para o Livro das Aves que ilustrava os nossos próximos objectivos. O nosso guia sabia o que nos queríamos e sem demoras rumámos às praias do litoral. 

Após alguns quilómetros por entre estradas razoavelmente alcatroadas entrámos numa zona de areal e por detrás de uma duna encontrámos um enorme bando de ibis-peladas. Saímos do carro e as aves levantaram voo mas regressaram ao mesmo local, o que permitiu algumas fotos em voo e também alguma aproximação. Com os cartões cheios da estranha beleza das íbis-peladas, partimos em direcção ao saudoso Atlântico em busca do garajau-pequeno. Antes disso, tivemos ainda a sorte de encontrar algumas pegas-do-Magreb na sua demanda por alimento. 

Já na praia calcorreámos o areal e volvemos as dunas com o vento agreste a esbofetear a nossa indómita teimosia. Até que se ouviu um grito de bom prenúncio: "Estão ali os garajaus-pequenos!" Eu, o zarolho de serviço, apenas vi umas quantas aves marinhas junto ao areal molhado. Decidi fotografar o bando mas estava muito longe. Não nos demos por satisfeitos e o resiliente guia ajudou-nos a chegar mais perto dos bichos com astúcia de quem sabe contornar as dificuldades. Por fim, durante vários minutos escondidos atrás de um montículo de vegetação dunar, fotografámos dois bandos misturados de garajaus-pequenos e garajau-de-bico-preto. Ficámos satisfeitos e voltámos para o carro. As pernas não se queixaram e o dia corria bem. Quando chegámos à viatura o nosso guia decidiu ausentar-se para orar, e nós respeitámos obviamente esse momento. 

Depois fomos almoçar a um restaurante também sugestão do nosso solícito anfitrião. A refeição foi deliciosa como sempre, as tagines, o pão, os doces, os chás, um manjar de requinte e simpatia. De barriga cheia e objectivos fotográficos alcançados, levámos o nosso guia até onde tinha deixado a sua lambreta. Durante a viagem, reparei por várias vezes, nos olhares dos locais em torno da nossa viatura. Podia ser mania da perseguição ou qualquer outro tipo de pensamento persecutório. Todavia, fiquei com a sensação de que uma rede de "guias de natureza" observava os nossos movimentos. Parámos o carro ao lado da lambreta infernal. Chegou a hora de pagar o merecido desempenho do nosso homem e mais uma vez afirmo sem ele, seria quase impossível realizar algumas destas observações. Contudo, ficou por fazer a pergunta essencial. Nós nunca questionámos quanto custaria aquele serviço de observação de aves. Talvez por incúria, quiçá descontracção, porém, não fizemos a questão das questões: QUANTO Custa? 

Por isso demos o que achámos justo. O rosto do guia mudou, de olhar afiado e voz áspera, caiu a máscara do homem afável de até então. Passámos a lidar com a ganância de quem queria um quantia exorbitante. Exigindo sempre mais e mais dinheiro, dizendo:  Vocês viram todas as espécies que queriam, portanto paguem-me!

O guia nunca nos disse quanto importaria os seus serviços e nós fomos levados pela sua simpatia e pela voz de embalo de cartomante. Sempre ouvi dizer: "ninguém dá nada a ninguém" e "não há almoços grátis". Com os nervos em fogo, não quisemos alimentar mais conversa nem discussões que poderiam descambar em algo indesejável. Estávamos em vantagem numérica, todavia não valia a pena qualquer altercação e demos quase todo o dinheiro que tínhamos. Não sabíamos quem estaria a observar, nem que repressões poderíamos vir a sofrer. Fizemos cara má (como se isso valesse de algo) e acenámos com a cabeça. Toma lá e sai daqui!

Bem… O homem não levou o dinheiro que quis mas levou mais do que nós estaríamos dispostos a pagar. Agarrou na mota e no saco com a refeição oferecida pelo restaurante (por ter angariado mais uns clientes) e desapareceu nas ondas infernais da sua lambreta. Se foi o preço justo não sei. Existem "chicos-espertos" em todas as geografias. É a lei da sobrevivência! Que lhe faça muito proveito! Que o dinheiro não lhe sirva para comprar anticoagulantes. Nós ficámos com a memória destes estilhaços para contar. 

A pose exótica da pega-do-magreb (Pica mauritanica), cujo olhar poderia ter sido desenhado a lápis-lazúli





O general rabirruivo-mourisco (Phoenicurus moussieri) sempre atento às movimentações dos bichos maiores que por ali passam.





A rola-dos-palmares (Streptopelia senegalensis) quase não deu pela nossa presença, o que permitiu chegar mais perto, mas não lhe conseguimos ver a cauda. Acontece.




À saída do parque assistimos aos voos insistentes dos abelharucos, infelizmente em busca de alguns insectos essenciais ao ecossistema.


Justiça seja feita... Nunca encontraríamos o picanço-assobiador senão fosse o nosso guia!




Vá lá! Uma pose mais interessante mas durante pouco tempo. Depois o picanço-assobiador cansou-se de ser o centro as atenções e desapareceu dentro de um labirinto de picos.


Dramático em tonalidades cinza, o mocho-galego (Athene noctua) quase passa despercebido no meio dos cactos e arbustos.


Os cactos são uma paixão antiga. 
Como tal, é um privilégio ter a oportunidade de fotografar estes amigos espinhosos no seu verdadeiro habitat.


A simplicidade de uma pequena árvore tão resiliente quanto os picos que silenciam o vento do queixume do deserto.


As raízes e o tronco que se movem na secreta comunicação da seiva.


O emaranhado cerebral desta composição de cactos - tão forte como os espinhos inquebráveis do tempo.



O sereno caudal do rio Massa.


O voo e o fascínio pela fealdade das ibís-peladas (Geronticus eremita).


Como é relativo o signo da beleza e do feio!
 Neste caso, a íbis tenta manter em forma as penas e o sentido estético do lado que mais a favorece.


Não precisamos de ser bonitos, intelectuais ou populares para pensar a vida como uma viagem.


Em todo lado havia uma escrevedeira-doméstica-do-sará (Emberiza sahari) pronta a alegrar o dia.



O fruto do argan e os seus múltiplos usos é explicado pelo Luis Arinto no vídeo desta viagem.


Entre dunas - um pormenor da flora local.


Enterrado os pés na areia no caminho até ao imenso Atlântico. 


Ovos de uma ave marítima - referenciado para não ser pisado.


O voo dos tão desejados garajaus-pequenos (Thalasseus bengalensis) misturados com os garajaus-de-bico-preto (Thalasseus sandvicensis).




No areal as aves assistem à fúria do mar e aos desafios que se anteveem. 



Quando a barriga começa a dar sinais, eis chegada a tão desejada hora da paparoca com muito tempero. 
Altamente recomendável!


No pátio do restaurante esta tartaruga arrastava a sua carapaça.
Ainda tentei uma aproximação amistosa, espreitei pelo postigo, disse olá, contudo não me ligou nenhuma.


Entrámos no restaurante típico. Nas paredes era exibida a indumentária local - cor que verdadeiramente me agrada. 



Antes das "tagines" foi servido um pão delicioso, tudo bem regado com água fresquinha!



Foto de grupo dos viajantes!







Agradecimentos:

Ana Frade
José Frade
Luis Arínto



M22

  Uma lágrima faz estremecer o vinco do lençol imaculado como uma flor ainda sem nome, há dias em que as palavras são audíveis rasgos ...