quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Inundação


 

no colapso ocular dos céus,

a inundação vertia a fúria  

num corpo de lama moldado 

pelas ruas engalanadas de natal.


ilhas de carros no meio de túneis pantanosos,

sapatos perdidos na avenida e máquinas esventradas,

casas dentro de aquários e árvores vestidas de lixo

boiam nas recém construídas gaiolas citadinas.


a força da água desafia fronteiras imaginárias

e a população não esqueceu o seu menino Jesus,

evitando o naufrágio, limpando o presépio.





domingo, 27 de novembro de 2022

ecrã cabeça

 


O vagar e a oportunidade esmagam-me a escrita

quero decompor um poema até à seiva, porém…

falham-me os dedos por entre o carcere do tempo,

a musicalidade com que digo não já é um bom começo.

 

não me arrependo dos dias gastos com a cabeça

enfiada na luz azul dos ecrãs, são eles que sustentam

a completa invasão do fluxo binário homem-trabalho,  

este é o meu ganha-pão – não pertencer a nada.


ser um ponto remoto de mim.

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

7




neste dia não me quero

apenas respiro no intervalo entre 2 gritos

um choro alegre e um riso doentio,

aniversário de goela aberta em vidro doce,


a saudade ditou que 

o meu pai fechasse os olhos

ao sétimo dia e quis o destino que 

eu nascesse no dia 7 

num outro mês qualquer.


na mais imperfeita saudade

procuro alguma coisa sem jeito ou forma,

e assim um fantasma ofereceu-me boleia

num guarda-chuva contra lagrimas intemporais.


nesta casa-tempestade erguem-se mãos vazias.

domingo, 23 de outubro de 2022

maturar doce veneno

 





De soslaio irrompeu o riso da serpente 

torso verde e escamas de terra,

a dor no pé - fino agulhar do dente,

ela sorriu sem sorrir na paz que há na guerra.


recordo o dia em que cai no seu encanto,

escorregadia foi a queda depois do amor, 

anos a um canto, sangro ainda o veneno,

de um adeus fêmea.


domingo, 16 de outubro de 2022

27 cêntimos

 




A noite ganhava espaço ao cansaço de outubro,

sendo a farmácia um oratório de fulgor manso,

não havia espera nem senhas para retardar a fuga,

apenas duas pessoas com as suas maleitas.


um senhor fazia contas e a menina farmacêutica ajudava;

o senhor fitava o vazio entre mãos e o receituário, 

escavava preocupado o singelo porta-moedas, 

derramando na bancada o tilintar dos cobres e da míngua. 


a menina com voz terna e olhos de santa sem altar

disse: "não se preocupe são vinte e sete cêntimos!"

com ternura juntou as moedas num montinho,

por fim, uma luz de cumplicidade única, iluminou rostos.


 o senhor ficou com menos uma dor das muitas com que caminhava

e foi.



quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Leitura Portátil: A Peste - Albert Camus

 



Quando acabei de ler este livro já tinha tomada a terceira dose da vacina contra a covid. Ainda não apanhei o vírus. Nem sei como, se calhar já apanhei e não dei por isso - hipótese improvável.  Continuo a ir para o trabalho de metro, máscara posta,  permanecer 8 horas de boca tapada com outra máscara, mesmo que seja o único  a fazê-lo no "open space" sem divisórias, com mais de 50 pessoas em distanciamento social suspeito. Viva o ar condicionador causador de tantas maleitas em anos anteriores! Se calhar sou o maluquinho persecutório lá do sítio com  a mania da perseguição viral. É bem provável! Porém, quero continuar a trazer todos os dedos para casa, com a mínima culpa, desejando ser apenas um veiculo portador de mais um dia feito e um livro por ler. Não estou livre de nada. Há quem diga quem não apanhou o bicho é porque não tem amigos. Tenho amigos e a maioria deles já apanharam covid. Virgem pestifero até quando não sei!

Este livro dos anos 40 do século passado é e será um tratado visionário de um vírus que mudou geografias e realidades sociais. Não vou falar das personagens, nem das suas interações, deixo isso para a vossa leitura. 

Esta peste (similar à peste do livro) tornou-nos mais virados para os fósforos que ardem no nosso umbigo. Mais solitários e pequeninos mas capazes de coisas grandes. Perdemos, de forma directa ou indirecta, aqueles que amávamos e não vimos partir aqueles que só conhecíamos por serem longínquos e silenciosos, contudo presentes nas rotinas abandonadas. As cidades tornaram-se desertos, as casas casulos de exilados em teletrabalho. Os hospitais lotados, as ambulâncias à espera para entregar os doentes, as filas nas farmácias e nos supermercados, tudo a abarrotar de urgência. A perda do rosto e do sorriso em esboço de gaze. A condensação húmida da nossa fala contra o vidro da janela, fumegava desejos de que isso acabasse já. 

Será que aprendemos? Outro vírus se prepara, outra guerra, seguida de inflação. Somos peritos em repetições históricas dos nossos fracassos.  Este livro é uma impressão digital de uma sociedade  obliterada por uma desconhecida peste. Outras pestes viram e com elas novos desafios de mudança de pele humana, 

Mais do que retratos agonizantes ou frases bonitas, eis algumas passagens que serviram de espelho à realidade covid : 

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63 - As casas dos doentes deviam ser fechadas e desinfetadas, os que as rodeavam submetidos a uma quarentena de segurança, os funerais organizados pela cidade nas condições que adiante se verão.

66 - (…) um novo decreto proibiu a troca de qualquer correspondência, a fim de evitar que as cartas pudessem evitar um veiculo de infecção. 

68 - (…) a primeira coisa que a peste trouxe aos nossos concidadãos foi o exílio.

70-  Na maior parte dos casos o exílio era em casa

75 - (…) as pilhas solitárias de barris ou de sacos testemunhavam  que o comércio também tinha morrido de peste.

104 De longe em longe estalavam os tiros das brigadas especiais encarregadas de matar cães e os gatos, pois estes poderiam transmitir pulgas.

106 - Esta peste era a ruína do turismo.

147 - A única maneira de lutar contra a peste é a honestidade. 

150 - pessoas regressadas de quarentena e que,  enlouquecidas pelo luto e pela desgraça, deitavam fogo às suas casas, na ilusão de que lá faziam morrer a peste.

152 -  A única medida que pareceu impressionar os habitantes foi a instituição da hora de recolher . A partir das onze horas, mergulhada na noite completa, a cidade era de pedra.

153 - (…) o cortejo fúnebre tinha sido suprimido. Os doentes morriam longe da família e tinham sido proibidos os velórios rituais.

180 - De cada vez que um deles falava, a máscara de gaze inchava ou ficava húmida à altura da boca. Isso tornava a conversa um pouco irreal, como um diálogo de estátuas. 

204 -As formas pulmonares da infecção que se tinham já manifestado. multiplicavam-se agora nos quatro cantos da cidades, como se o vento provocasse e alimentasse incêndios nos peitos. 

218 - (…) num minuto de distração, a respirar para a cara de outrem e a transmitir-lhe a infecção.

249 - Tudo o que homem podia ganhar no jogo da peste e da visa era o conhecimento e a memória.

257 - Sabiam agora que, se há qualquer coisa que se pode desejar sempre e obter algumas vezes, essa qualquer coisa é ternura humana. 



Terminei de ler este livro a 30-03-2022


domingo, 7 de agosto de 2022

mundo 0-1

 

quando morre um poeta

a guerra engalana-se faustosa,

a fome veste-se de ganância,

a solidão despe-se órfã de página. 


quando morre uma criança

as árvores abraçam os céus com raízes,

as flores precipitam-se no lume perfumado 

a tua boca chora para sempre 


um novo mundo perdido.




Homenagem à criança que faleceu durante  o rali vinho da Madeira. e para a Poeta Ana Luísa Amaral.







terça-feira, 2 de agosto de 2022

A casa que nunca foi tua

 



os corpos que visitaram esta casa,

deixaram no pó, a queda dos sorrisos,

atrás das portas, escondem-se bichos,

rivais solitários nesta gaiola de grilos. 

 

as sombras que ocuparam este quarto,

reclamam o amor rarefeito pela extinção da cor,

aceitam a confissão de que sozinhos somos maiores

que o espaço por ocupar desta área de vácuo.


quando estou aqui sou proprietário desta dor,

feita da caliça e da humidade com que me alimento,

quando me certifico que a luz ficou apagada e a porta calada,

então, há todo um monstro de plasticina que se anicha no adeus.


sem que nenhum de nós abra as cartas a tempo,

volto 15 dias mais tarde para regar as imitações de deserto.



terça-feira, 12 de julho de 2022

Coruja-do-mato desde a janela do meu quarto

Hoje, pelas 03:15 da manhã, estava em teletrabalho no turno da madrugada, quando ouvi uma vocalização familiar. Abri a janela e tentei encontrar o bicho mas sem sucesso. Voltei para o computador, passados poucos instantes as vocalizações aumentaram de intensidade. Fiquei de alerta. Da minha secretária consigo ver a rua e reparei num vulto a passar junto aos candeeiros do jardim. Dei um pulo e espreitei novamente por entre as cortinas. Lá estava a carismática e imponente coruja-do-mato (Strix aluco), poisada num poste do outro lado da rua. Longe. Foi um minuto de sonho, no qual tive o privilégio de observar esta ave desde a janela do meu quarto. A dificuldade para focar foi grande e consegui apenas duas fotos antes de a coruja ir à vida dela e eu voltar ao trabalho. Por Carcavelos, a construção floresce, o que faz com que este predador nocturno perca habitat. O ano passado apenas consegui gravar o som de algumas das suas vocalizações por aqui. Este ano consegui uma fotografia possível ou sofrível, contudo, o que conta, é este momento que ficará guardado na memória das noites felizes.






segunda-feira, 11 de julho de 2022

Vizinhos

 




do rés do chão aos andares cimeiros floresce humidade

os gatos já não falam com os fantasmas indisciplinados,

os roupões tingidos ficam dias nos estendais a adiar a morte,

as cartas das pensões amontoam-se nas caixas do correio.  

 

das janelas fechadas fazem-se máscaras sem rosto,

dos beijos apartados às mãos a cheirar a álcool,

toda a distância do afecto é ampliada pelo olho de boi;

da porta espia-se a ausência de quem desespera.

 

de quando em vez a luz da escada acende-se,

as dobradiças de ferro gritam por óleo,

fecha-se o dia após 25 segundos de luz,

derramada indecentemente no corrimão solitário.

 

a ambulância levou os meus queridos vizinhos,

a contragosto, num arrastão doentio e veloz,

nesse dia ouvi dizer: nunca vivemos nada assim!


domingo, 26 de junho de 2022

Pelas garras da águia-real

Em outubro de 2020 visitei Atenor, uma vila do Município de Mirando do Douro, Trás-os-Montes. Fiquei alojado na Casa da Ti Cura onde fui recebido por entre sorrisos hospitaleiros e gestos atenciosos. Ouvi histórias sobre bichos e homens, com uma naturalidade incrível de quem conhece estas terras,  mais parecia que os bichos se roçavam nas nossas pernas e nos mordiam os calcanhares. Pelas ruas da vila, cartazes gigantes dos habitantes locais e da sua honrosa idade, eram exibidos nas casas de granito. Provei a paisagem e os sabores da alma, ao procurar na rudeza da pedra, respostas para o meu coração. A minha desenfreada gulosice apreciou sobejamente o pão quente e as compotas, acompanhadas por bolo de noz. Descansei no silêncio da noite Mirandesa para de manhã cedo dirigirmo-nos para um abrigo, onde com sorte, iria tentar observar o voo da águia-real pelos vales escarpados que ladeiam o rio Douro.

A natureza ditou o seu curso nas garras deste predador. Tive o privilégio de observar a aguia-real em plena acção. A águia desmembrou um coelho, como exímia talhante, numa brutal carnificina de rápida ingestão. Assim se ditam as glórias e as fraquezas de quem foge da fome e de quem corre atrás da fuga. Nenhum outro bicho se aproximou. A águia-real reinava no seu trono, majestosa e sem coroa, pois dispensa tal opulência e os factos falam por si.

A águia-real apresenta uma envergadura que pode atingir 2.5 metros, pesando até 6.5 kg e atingir a velocidade máxima de 190 km/h. Esta rapina tanto pode pode alimentar-se de animais mortos, como fazer uso das garras e do bico afiado para caçar mamíferos, répteis e outras aves. Esta é umas das aves mais mortíferas do planeta.

Momentos reais!


Uma vespa desafia a paciência da águia-real




os vales e o rio - onde o homem é um mero passageiro 


gritos de glória




os passos e as garras




na confissão das árvores ouvem-se histórias trazidas pelo vento


momento de travar




a degustação


por entre os ecos do planalto Mirandês e o serpentear do rio Douro


a pose de quem manda






                                                   o reflexo das nuvens no berço do rio 


os preparativos para levantar voo




voo de despedida


                                                      a geografia local e a sua avifauna


Atenor e nos seus recantos e saudades.


Sempre a pensar nas pessoas que fazem parte da paisagem viva do Planalto Mirandês. 




Passaram-se dois anos e a memória não me deixou em paz. Tinha este artigo por acabar faz tanto tempo, fiz-me a ele e já está!






Agradecimentos:

Família Frade
Luis Arinto
Jambas e esposa
todos os seres visíveis e invisíveis


domingo, 19 de junho de 2022

Ponta de São Lourenço

 



ao afiador de escarpas, só de olhar, cansa o fôlego;

quão rude é o coração da pedra inalcançável?

músculo salgado na rebentação dos meus dias curtos,

nas pernas arenosas e moídas pela aridez do momento,

trago a vista em lágrimas por falhar o teu cerco. 





Já chegámos à Madeira, ou quê? Ponta de São Lourenço

 

No Funchal, o calor pedia sombra e bebida fresca, porém havia ainda algo para descobrir antes do regresso a Lisboa. O meu amigo Bernardo tinha reservado para o último dia a visita à Ponta de São Lourenço e foi uma óptima escolha. A magnífica Ponta de São Lourenço é um monumento natural inserido na Rede Natura 2000, fazendo parte da Rede de Monumentos Naturais da Região Autónoma da Madeira.


Uma paisagem árida e de vegetação arbustiva rasteira, algo completamente diferente do que tinha observado do resto da ilha. Uma península que se estendia como uma cauda escamosa de animal gigante, movendo-se de trezentos em trezentos mil anos com o regresso dos gigantes fosseis à vida.   


Uma vez chegados, deparámo-nos com grupos de jovens turistas, devidamente equipados, que davam início às suas caminhadas. Uma senhora que devia ter mais de 80 anos, acompanhada por uma jovem, estava mais fresca do que eu e com mais fôlego de aventureiro para caminhar por entre escarpas e veredas ingremes.  Caminhemos pois!




Eu não consegui fazer o percurso de 9 km na sua totalidade, nem perto disso, o coração assim não o permitiu. Contudo, gravei na memória o ponto onde fiquei. Talvez, numa próxima oportunidade, volte a este local e se possível caminhe mais uns mil metros.



Depois de calcorrear trilhos, onde as pedras pareciam fugir por debaixo dos pés, o terreno acidentado, com elevações imprevisíveis, descidas que convidavam ao desequilíbrio, confesso, não me esburguei por sorte. O sol a pique acentuava o cansaço, como tal, havia que fazer umas pausas para beber água e sentir a paisagem entrar nas veias. Inspirei o ar atlântico e depois de matar a sede, surgiu um corre-caminhos (Anthus berthelotique reclamava como seu poiso, aquela pedra onde eu estava sentado.




Pelos céus, entre o mar e a península, em busca de uma presa mais distraída, um peneireiro-comum (Falco tinnunculus) fazia voos rasantes junto às escarpas.  Cá em baixo, nós humanos ainda temos tanto que aprender até que a alma ganhe pena.





Agradecimentos:

Bernardo
Semedo
Silva
Tom





M22

  Uma lágrima faz estremecer o vinco do lençol imaculado como uma flor ainda sem nome, há dias em que as palavras são audíveis rasgos ...