sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Claridade a Mário Piçarra


Assim foi...uma sala cheia de afectos e claridade. O auditório da Fnac de Oeiras foi pequeno para receber tantos amigos e admiradores do Mário Piçarra. O seu último trabalho musical "Claridade" ganhou luz nas vozes dos poetas e dos músicos que deram força aos acordes desenhados pelo Mário Piçarra. Tive oportunidade de descobrir que o Mário para além de excelente músico também era poeta / letrista. Gostei do que ouvi.

De uma forma ou de outra, ele partilhou o seu génio pelos olhos que se inspiravam ao recordar a sua obra, mas acima de tudo, a sua (exelcelente) pessoa. Eu conheci o Mário nas ondas poéticas de Carcavelos e ali estava uma boa pessoa, de sorriso cativante e com uma história pronta a desarmar qualquer um.

Ontem, o Mário esteve naquela sala, humanizou aquelas vozes, tocou nas cordas das guitarras e no tom das outras almas que o saudaram de pé e o que fizeram ecoar nesta e noutra dimensão a sua luz. 

Para ti...



quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Kuhmo e as suas aves

Depois de tomarmos um apetitoso pequeno-almoço no Wild Brown Bear em Kuhmo, perguntei quanto custaria uma visita ao abrigo para fotografar passeriformes. Gentilmente, disseram-nos que para nós "tugas pés de chinelo" seria grátis; a verdade é que mais ninguém perguntou o preço (uns modestos 5 euros). Agradecemos e não perdemos tempo. Encoberto pelas árvores o abrigo fotográfico assemelhava-se a uma misteriosa casa de campo de onde poderiam surgir a qualquer momento duendes e elfos. À porta tínhamos à nossa espera tapetes com vassourinhas afiadas para remover toda e qualquer resto de neve ou terra e assim deixar às instalações limpas. Havia também troncos de lenha, talvez para fazer uma fogueira noutro local, uma vez que o abrigo era totalmente feito de madeira. No seu interior não estava frio e o abrigo parecia estar bem isolado. Antes de montarmos os tripés reparámos que o chão à frente da casa estava completamente coberto por cascas de sementes de girassol e mesmo assim ainda espalhámos mais um punhado que retirámos de um saco. As aves apareceram de forma destemida e de apetite insaciável. 



O vistoso dom-fafe foi uma das primeiras aves a medir a distância entre a timidez e a fome.






A bela fêmea de dom-fafe assemalha-se bastante ao nosso priolo, ave endémica de São Miguel nos Açores.


O pica-pau-malhado-grande pousava de tronco em tronco e aguardava pelo melhor momento para se mostrar.




Até que veio  espreitar se havia sementes esquecidas em cima dos troncos.


Já os pequenos lugres surgiam em grandes bandos num canto hipnótico.


Mais tímido, o tentilhão-montês esperava pela melhor oportunidade para se abastecer de sementes no solo.



Quem diria… consegui um exercício de focagem bem sucedido! O verdilhão que atravessou-se à frente do tentilhão, este último olhava para o solo no encalce das oportunidades perdidas.


Sempre esperto e o oportunista, o gaio veio vasculhar a neve em busca de algum tesouro enterrado e encontrou…


Por sua vez, o pintarroxo-de-queixo-preto surgiu num poiso contemplativo e raramente se misturou com as outras aves.



O esquilo-vermelho que por estas paragens ostenta uma coloração mais clara veio degustar as sementes fresquinhas.



Pelas proximidades surgiram também chapim-monte e chapins da lapónia, porém não permaneceram muito tempo no local e a qualidade das fotos não faz jus as aves. Como tal, essas espécies serão contempladas (com uma qualidade mais aceitável…) no próximo artigo sobre a Finlândia - Kuusamo.

** 05-05-2018 Kuhmo - Finlândia **


Agradecimentos



Ana Frade
José Frade
Wild Brown Bear



domingo, 9 de fevereiro de 2020

Kuhmo na terra dos ursos-pardos



Chegámos em cima da hora às instalações da Wild Brown Bear em Kuhmo, à porta o nosso anfitrião já olhava para o relógio e gesticulava apressadamente. Às 17:00 entrámos no auditório onde foi apresentada a empresa e os procedimentos a ter em conta nesta experiência de observação de vida selvagem. No decorrer da apresentação foi-nos comunicado alguns dados a reter; por exemplo, o urso-pardo (Ursus arctos) têm mais medo de nós do que aparenta, são animais tímidos mas também curiosos e alguns animais são provenientes da Rússia. Raros foram os casos de incidentes com estes ursídeos porém deveríamos ser discretos. De igual forma, foi-nos alertado para a eventualidade remota de encontrarmos algum urso no caminho entre abrigo e o centro de interpretação, deveríamos manter a calma, não correr, que o animal, "se tudo corresse bem", partiria sem mais delongas. Este mesmo comportamento deveria ser adoptado no caso de um encontro com lobos ou glutões (Gulo gulo). Confesso que engoli em seco e tentei não pensar nas possibilidades de um encontro inesperado. Os slides eram projectados numa cadência lenta para que retivéssemos todos os pormenores. O último slide da apresentação afirmava peremptoriamente que não deveríamos sair do abrigo antes das 07:30 da manhã!



Seria uma longa noite sem pregar olho. Entre as instalações e o abrigo eram sensivelmente 2 quilómetros, no meio de neve até ao joelho, por entre um trilho escavado na imensidão branca, ladeada por altas árvores sentinelas. Recebemos mantimentos para a nossa estadia, café, sandes e um aquecedor a gás que deveríamos ligar quando entrássemos no abrigo. Estavam -6 graus mas o frio era silenciado pela adrenalina do momento onde tudo podia acontecer. Bem dito, mal feito!



O grupo de 10 fotógrafos oriundos de diferentes países estava pronto. Mochilas às costas e respirar fundo. Confirmámos os mantimentos, o aquecedor mais o material fotográfico e toda a indumentária especialmente concebida para enfrentar temperaturas negativas. Partimos em direcção ao abrigo, ordeiramente conduzidos pelo senhor finlandês que nos deu a palestra. Foi uma caminhada dura, com neve a dificultar os passos, especialmente para quem ia carregado com quilos de bugigangas guardadoras de memórias. O meu coração deu sinais de algum cansaço mas ao longe já avistávamos as casinhas de madeira. Teorizei um cenário improvável: se um urso resolvesse coçar as costas contra as paredes daqueles abrigos, os mesmos não aguentavam e desmoronavam-se como barraquinhas de palha. Terrível pensamento. Alguma vez um urso se aproximava de um abrigo, assim?…. Tentei acalmar as ideias. Cada abrigo albergava 2 a 3 fotógrafos e o grupo dividiu-se pelas habitações.

Mal entrámos na barraquinha acolhedora esburguei-me com estrondo. Eis o meu cartão-de-visita! Desastrosamente enleado nos sacos cama, mochilas e tudo o que houvesse para emaranhar. Um clássico comportamento de um homem com um coração nas mãos. Cansado e com a voz tomada pelo elevado ritmo cardíaco, tentei recuperar o fôlego, olhando em frente, contemplando a imensa candura que a neve projectava pela pequena janela rectangular do abrigo. Até que uma enorme mancha castanha tapou a minha visão. Imensamente maciça e medonha. O que era aquilo? Não podia ser! Impossível! Tentei articular uma interjeição, porém lembrei-me da norma de silêncio que era necessário manter. E sem engenho para gestos… Gaguejante e baixinho, saiu-me qualquer coisa do género: "O urso está ali", uma vez. Outra tentativa, agora com convicção digna de testículos apertados: "Ali o urso está…." Ninguém me ligou. Tentei de uma forma pausada quase teatral, tipo aflito para mictar: "o urso aqui… à nossa frente" nem o Frade nem a sua esposa conferiram credibilidade a este escaravelho que tentava recompor-se de uma espalhafatosa palhaça dentro da barraca. 



Sem dar tempo para pousar as mochilas, instalar os tripés, preparar as máquinas ou simplesmente comentar a cor do frio… O urso-pardo já lá estava à nossa espera!


O guincho que perseguia o urso.



Incrédulos e sem palavras, os meus amigos começaram a fotografar o enorme urso que calmamente passeava à nossa frente. Com avanços e recuos, aparecimentos e sumiços, assim se fez a passagem de modelos do senhor urso. Quanto eram 01:00 da manhã ainda havia uma réstia de luz polar que iluminava as brincadeiras do animal. O urso deitava-se de costas para depois rodopiar na neve numa arrojada manobra de break dance. Até que desapareceu levando com ele a nossa resistência e adormecemos embalados pela mortiça chama do aquecedor. Acordámos 3 horas depois. O que aconteceu lá fora nesse tempo não sabemos. Às 05:00 da manhã o enorme bicho voltou a surgir com reaparecimento da luz, exibindo as duas centenas de quilos de força bruta. Tirámos mais algumas fotografias e com o chegar das  07:00 o urso-pardo fundiu-se na paisagem sem um adeus prévio. 

Às 07:30 o grupo de outros fotógrafos reuniu-se para o regresso. Foi uma viagem com poucas falas e ainda contou com um desmaio de uma senhora que não resistiu a alguns nervos de uma noite mal dormida. Já nas instalações da Wild Brown Bear foi-nos servido um valente pequeno-almoço e no meio da degustação ouvimos contar que no nosso grupo uns escoceses tinham avistado o glutão… confesso que sonhei com tanta coisa mas não me recordo de metade. Entretido com as torradas, pela janela observei 3 crianças finlandesas, talvez com 10 anos, nas suas brincadeiras com a neve, achei curioso que todas elas tinham ao pescoço um fio com uma pequena bolsa com a forma de punhal, perguntei o motivo: segurança. 

Agora recordo o momento em que por intermédio da objectiva descortinei um olhar meigo naquela fortaleza de músculo selvagem. Ainda oiço os nossos passos na neve, a resistência de mais um fôlego no degelo, o frenesim surpreendente do momento, a tralha maquinal onde guardávamos instantes imperdíveis, a paisagem tal bela quanto criminosa que nos oferecia perene, o sono branco, a fragilidade da nossa existência perante a vontade da natureza. Deixo para trás inscrito na neve as memórias dos dias que por lá se desfizeram em candura polar. Este nosso amigo "ursinho" foi apelidado de broken nose pelas marcas que apresentava no nariz. Quando era menino, lembro-me de uma cirurgia que fiz e do urso de pelúcia que me ofereceram, com o qual adormecia.



Uma imponente sapatada na neve


Na cabeça do urso a consciência do guincho


A procura por alimento


O urso-pardo foi extinto em Portugal numa matança organizada pela população serrana em 1843 na Serra da Mourela no Gerês, ao que rezam as crónicas seria uma animal proveniente da Galiza. Em 2019 foram encontradas evidências do regresso de um urso, ainda que de forma esporádica e errante, ao Parque Natural de Montesinho, proveniente da Cordilheira Cantábrica.



Outros bichos cirandavam pelo manto branco, como era o caso de uma pequena alvéola-branca (Motacilla alba) perdida nos raminhos sobreviventes ao nevão.


Depois chegou o famego (Larus canus) - uma gaivota que apetece dar festinhas.


Em cima de uma árvore o famego contemplava as manobras das outras gaivotas desenvergonhadas.

Cá em baixo, um casal de gaivotas-prateadas (Larus argentatus), entretinha-se numa comunhão de afectos.


A gralha-cinzenta (Corvus cornix) controlava as ocorrências à distância.


À frente do abrigo, um lago gelado servia de pista de patinagem aos bichos que por ali passavam. Esta era a paisagem digna de um policial nórdico que nos silenciava o fôlego. 







Antes de partirmos, perguntei qual seria o preço do abrigo das aves contíguo às instalações da Wild Brown Bear. Gentilmente foi-nos oferecida uma tentativa fotográfica que humildemente aceitámos. Esse será o próximo artigo da nossa viagem por terras nórdicas.


** 05-05-2018 Kuhmo - Finlândia **


Agradecimentos

Ana Frade
José Frade 
Wild Brown Bear



M22

  Uma lágrima faz estremecer o vinco do lençol imaculado como uma flor ainda sem nome, há dias em que as palavras são audíveis rasgos ...