domingo, 30 de abril de 2017

Leitura: A Náusea - Jean-Paule Sartre






Como grande parte das minhas leituras, este livro fez-me companhia nas deslocações para o trabalho, e já nas últimas páginas, em casa, no aconchego do sofá. Contudo, a maior parte da leitura foi em deslocação, com a envolvência sonora dos túneis do metropolitano a servirem de banda sonora. Talvez seduzido pelo embalo causado pelo respirar da hora de ponta e das suas movimentações constantes, ou até mesmo, pelo trote da massa uniforme em direcção aos seus ancoradouros profissionais. Dei por mim a sair da carruagem do metro e a entrar em modo de leitura. Ou seja, sentado num banco, minutos antes de ir trabalhar, sorvendo as páginas deste romance, acompanhado pelo burburinho mecânico dos comboios em descargas constantes de passageiros. Quando tinha mais tempo, desviava o olhar do livro e observava vultos que aqui e acolá desapareciam por entre os poros das paredes e as gargantas das escadas rolantes, até a gare ficar vazia como uma flor morta de esperança. Questionava-me sobre o "eu" e o "outro" na constante superação existencial necessária para a construção de novos dias. Cada qual com a sua cabeça e com o seu confessionário ambulante e problemático; com as suas nódoas e os seus nojos. Cada um com as suas prioridades e valências. Depois voltava a saborear o conteúdo destas páginas e tomava nota das frases fortes que me sobressaltavam. Frases que impeliam à reflexão sobre a existência das coisas e daqueles que nomeiam os elementos. A origem das coisas que conhecemos como coisas porque falamos falamos delas. De início senti-me puxado pela história repleta de símbolos filosóficos. Porém, o fogo foi-se apagando e quase abandonei a fogueira literária, perdendo grande parte do interesse pelo rumo que o livro estava a tomar. Não desisti da história por uma questão de teimosia. No entanto, reconheço que o problema foi única e exclusivamente meu; quiçá pelo modo como escolhi ler este livro, no meio do caos do metropolitano, em vez da calmaria caseira das pantufas e das almofadas. O problema às vezes não é do livro mas sim a qualidade do tempo que temos para lhe dedicar. O problema somos nós.


Algumas luzes (intermitentes)


Antoine Roquentin: é um historiador de 30 anos que está a escrever a biografia do marquês Rolebon ao mesmo tempo que vive uma demanda filosófica em busca do sentido da existência. Com o passar do tempo esta busca irá arrastá-lo para várias estranhas constatações existenciais que lhe causam desconforto e por assim dizer... Náuseas. 


Autodidacta: Um rato de biblioteca que persegue Roquentim em diversas ocasiões chegando a aparecer onde menos se espera para o interpolar com bizarro despropósito. Está-lhe reservado um dos episódios mais bizarros, quando na biblioteca é apanhado a seduzir jovens alunos...


Françoise: é a dona e a mulher forte do café Rendez-vouz dos Ferroviários com a qual Antoine Roquentin se envolve numa relação casual, enquanto aguarda pelo encontro com a sua ex-namorada Anny, (um caso amoroso mal resolvido). 


Paragens escolhidas (em horas de regresso incerto)



Já não posso receber nada destas solidões trágicas, senão um pouco de pureza inútil.

Pág. 42 


Estou sozinho; as pessoas voltaram quase todas a casa; estão a ler o jornal da noite, ao som da telefonia. O domingo que findou deixou-lhes um gosto de cinza, e já o pensamento se lhes vira para segunda-feira. Mas, para mim, não há segunda-feira, nem domingo: há dias que se emperram uns aos outros em desordem e depois, bruscamente, iluminações como esta.

Pág. 74 


O meu pensamento sou eu: por isso é que não posso deter-me. Existo porque penso...

Pág. 128


E se eu fosse afagar? Afagar no desdobramento dos lençóis brancos a carne branca em flor que cai doce, tocar nas lenturas floridas das axilas, nos elixires e nos licores e nas fluorescências da carne, entrar na existência de outrem...

Pág. 130


Quanto a mim não tenho aborrecimento, não me falta dinheiro, não tenho patrão, nem mulher, nem filhos, existo e pronto.

Pág. 135


«Acho», digo ao Autodidacta, «que é tão impossível odiar os homens como amá-los»

Pág. 149


Os homens abraçam-se sem se conhecer nos dias de declaração de guerra: à chegada da Primavera sorriem-se mutuamente. 

Pág. 156


«Vou sobrevivendo a mim própria.»

Pág. 180


Homens sós, absolutamente sós, com horríveis monstruosidades, correram pelas ruas, passarão pesadamente diante mim, de olhos fixos, fugindo aos seus males e levando-os consigo, de boca aberta, com a sua língua de insecto a bater as asas. Então eu é que rebentarei a rir, mesmo que o meu corpo estiver coberto de nojentas crostas suspeitas que se abram como flores de carne, em violetas, em ranúnculos. 


Pág. 198 



Foram estas as vozes que me fizeram companhia, enquanto recordava as minhas motivações de ser eu todos os dias um novo dia.

                                                            ***


domingo, 23 de abril de 2017

Orquídeas silvestres de Abril




Às vezes não é preciso percorrer grandes distâncias para sermos surpreendidos pela magia da natureza. Por vezes os pequenos grandes fenómenos naturais sucedem-se mesmo do outro lado da rua. Foi isso que aconteceu quando saí de casa para fazer uma caminhada ao deparar-me com uma pequena orquídea silvestre Serapias parviflora, de nome comum serapião-de-flor-pequena, escondida no meio da vegetação. Depois de olhar com mais atenção, reparei que não era uma mas sim dezenas delas povoando os terrenos baldios que cercavam o acesso à estrada. Pé ante pé, com cuidado e com vista atenta para não pisar estas surpresas florais, menos de um metro à frente fui brindado com a explosão de cor de uma outra orquídea, a Anacamptis pyramidalis, também conhecida por satirião-menor. Esta extraordinária planta iluminou o meu silêncio de fim da tarde. Ao fazer algumas fotos reparei que a orquídea estava a ser usada como ninho para aranhas que de pétala em pétala urdiam a sua teia. São estes os desígnios que a natureza tece pela sobrevivência das espécies, enquanto eu percorro mais um dia pela fragilidade destes olhos.



Deitado no chão junto da Serapias parviflora, em segundo plano surge a Anacamptis pyramidalis.

Vários estágios do crescimento da planta:


Pormenores da flor da Serapias parviflora 





A menos de um metro duas orquídeas diferentes. Com o foco a incidir sobre a Anacamptis pyramidalis deixando em segundo plano a Serapias parviflora.



Composições com a Anacamptis pyramidalis  e os sua vizinhança amarela. 



Pormenores das sépalas, pétalas e labelo.


E quando a aranha faz da orquídea a sua casa.





sábado, 22 de abril de 2017

Time lapse na gaiola-das-bruxas (Clathrus ruber)



Recorrendo à técnica de time lapse, foram precisos 12 dias para filmar o evoluir do cogumelo gaiola-das-bruxas (Clathrus ruber) no Parque Florestal de Monsanto. Eis o resultado.



sábado, 15 de abril de 2017

Viagem a Carcassone




Ao longe surge as imponentes muralhas da magnífica Carcassonne, rasgando o horizonte, abrandando os ritmos as pessoas e das máquinas, num suspiro de espanto, vergando-nos o olhar, numa vénia por respeito à história que irrompe pelos poros da pedra forte. 



Ainda não tinha entrado na cidadela e já ouvia as espadas contra os escudos, em gritos de guerra, num frenesim imaginário de uma batalha medieval. Uma vez ultrapassada a fronteira que separa a ficção da realidade e já dentro da fortaleza, confesso que senti-me protegido dentro das muralhas do castelo, mas ao mesmo tempo, cercado por ecos de tempos sangrentos. 




Os ângulos desta fortificação falam guerra. Por entre torres, pontes levadiças, fossos e muralhas, surgem símbolos beligerantes de uma luta do homem contra o homem, tal como hoje, pela posse das  gentes e das terras.


Esta é uma construção da idade média conservada contra a passagem do tempo e da memória. A fortaleça inicial foi edificada no século XIII e por ela passaram muitos povos desde romanos, visigodos, celtas, sarracenos, envolvendo-se em disputas sangrentas.


Depois de séculos de batalhas que levaram ao abandono dos seus habitantes, Carcassonne entrou num perigoso declínio quase desfazendo-se em ruínas, não fosse a reconstrução no século XIX, levada a cabo por Viollet-le-Duc, que também reconstruiu Notre-Dame. Carcassonne foi declarada Património Mundial da Unesco em 1997.


A cada esquina, a cada recanto da cidadela, deambulavam muitos turistas das mais variadas latitudes e de linguajar diversificado. Tal como eu, caminhante de máquina fotográfica em riste, imbuídos de uma paz efémera, em comunhão com a história, e porque não dize-lo de olhos sedentos por contos de fadas.



Passo após passo, de sentidos apurados, seduzidos pela oferta comercial dos sabores e das recordações que se levam para casa, para não esquecer que às vezes vivemos dentro de uma lenda. 



Finalmente, encontrei silêncio no recolhimento da basílica de Saint-Nazaire, ornamentada com vitrais que filtram os esboços do mundo exterior e um de imponente órgão onde as melodias dos silêncios e dos passos de fé se fazem escutar. 






A basílica de Saint-Nazaire foi construída no século XII e resulta da perfeita combinação dos estilos românico e gótico.


Já no exterior, as gárgulas da basílica olham-nos com a urgência de um alerta, inquietando-nos com a sua crítica monstruosidade de desaguadouro águas.


É como se nos estivessem a dizer que o demónio nunca dorme, exigindo a nossa máxima atenção, mesmo em locais sagrados. O mundo anda sobressaltado com o terrorismo e as eminentes roturas políticas que se advinham. Por enquanto, as gárgulas continuam no mesmo sítio e de lá vociferam avisos; as cidades e suas as muralhas tantas vezes invisíveis, contam-nos histórias de distantes batalhas entre povos, espaçadas no tempo, guerras surdas de actualidade gritante. De olhos postos no céu, às vezes pergunto-me, tinha mesmo que ser assim? E as gárgulas, nos dias em que não são de pedra, por certo também...









Agradecimentos: Família Frade

M22

  Uma lágrima faz estremecer o vinco do lençol imaculado como uma flor ainda sem nome, há dias em que as palavras são audíveis rasgos ...