quinta-feira, 26 de maio de 2022

Oração





uma composição maquinal de luzes verdes e sinais sonoros

adormecem os resistentes nas cadeiras com rasgos de uso, 

esta luta é feita de gritos de esperança em dias sonolentos;

o tratamento é injectado na mão do terço e da reza.


há pacientes que se despedem com até amanhã!

ou até para a semana, mês que vem, quem sabe até quando!

na cumplicidade do  afecto que mantêm o barco vivo; 

as enfermeiras são capazes de tudo para nos fazer acreditar em fadas.


estou ao lado da minha mãe, perguntei-lhe se ainda lhe doía as costas,

ela disse que estava melhor, levantei-me dirigi-me à  janela do hospital, 

lá fora, na varanda empedrada, duas flores amarelas irromperam do cimento,

dançam trinfantes sempre que o vento as chama. 


a minha mãe olha para as máquinas e os quimicos que nos rodeiam,

gota a gota, a injecção entra no caule da nossa oração.



domingo, 22 de maio de 2022

86

 





os homens nascidos dos antigos sobreiros,

eram baptizados dias após o descascar nocturno umbilical,

a origem de uma vida sem rede ou santo, feita de sulco e cicatriz,

onde as lágrimas eram o disfarce perfeito daquela chuva de verão.


aos sete anos eram meninos trabalhadores,

andavam pelos montes e dormiam na cauda da raposa,

uma rica sardinha era um banquete de irmãos,

e repartia-se meia carcaça em fatia fina pela navalha das fogueiras.


para o estado, aqueles seres eram duplos entregues a eles próprios,

bombas relógios de novas famílias prontas a despachar filhos trabalhadores,

para os pais, tinham fé de que o pão fosse professor e a sardinha doutora, 

mas nada disso importa, quando se nasce duas vezes e a árvore-mãe


nos abençoa num grito.


 





Parabéns meu Pai pelos teus 86 anos!

Sei que aparas os meus disparares numa outra dimensão.






 

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Já chegámos à Madeira, ou quê? Um canário que não queria ser canário!

Nas traseiras do Palácio de São Lourenço no Funchal, um bando de 15 canários-de-terra perscrutava o relvado em busca de pequenas sementes. Quando os vi, rastejei sorrateiramente até às aves, qual inofensivo "sniper". Tudo isto para obter uma fotografia com um melhor ângulo e também com melhor luz. O meu lento avançar rastejante não passou despercebido aos muitos transeuntes que passavam pelo centro do Funchal; pensando eles, quiçá, que me tivesse dado uma coisinha má. Os meus amigos depressa descansaram as preocupações dos olhares curiosos com uma lacónico desculpa "está tudo bem, é maluquinho por passarinhos"





Já agora,  o canário-da-terra (Serinus canaria) é uma espécie selvagem que pode ser observada apenas nas ilhas dos Açores, Madeira e Canárias, e daqui surgiu as variações do canário doméstico com o seu belo canto que entretém a nossa nostalgia pelas manhãs de outras primaveras. Todavia, se estes canários-da-terra soubessem da clausura a que são submetidos os outros canários à janela, garantidamente, não permitiam que me aproximasse deles, nem a rastejar...






Baixa-chiado 7:53

 


A escadaria do metropolitano é uma linha de montagem

na desconstrução do sonho paralelo destes corpos em fuga, 

somatório de vultos pelos caminhos entrecruzados,

onde aceleramos o passo e matamos o dia anterior.


a marcha é coordenada pelo ritmo ordeiro e fabril

de um relógio de ponto cardio-atómico,

os sapatos conduzem um véu fantasmagórico,

de quem começa a esgravatar o túnel com os olhos.


os pensamentos em falso, um a um, são esmagados,

atrasamos e antecipamos dores e anseios.

na voragem diária que desejamos descalçar.


o ninho só cai uma vez, depois reconstruímos os braços.



domingo, 1 de maio de 2022

Mãe e filho, lado a lado

Na primeira sessão do tratamento oncológico

provámos a sopa do hospital e o arroz doce,

para afugentar a lâmina fria do medo

e o travo amargo que se colava às palavras.

 

bebemos água, cerimoniosos, benzendo segredos,

amparamos as horas frágeis, mãe e filho, lado a lado,

na esperança e no desespero desta luta de silêncios e fé!

sim… a boa disposição das enfermeiras era um placebo contagiante!

 

um copo de água com açúcar... para festejar a vida por favor!

ao sair do hospital, a dimensão da primavera eclodia em cores mágicas.

acredito que algures no recesso de um qualquer universo,

haja uma luz que nos guia, dando sentido a este caminho de pétalas caídas.


M22

  Uma lágrima faz estremecer o vinco do lençol imaculado como uma flor ainda sem nome, há dias em que as palavras são audíveis rasgos ...