terça-feira, 11 de agosto de 2020

na sombra dos teus ramos







meu doce pai de sorriso fácil,

arrasta os pés em direção ao café,

rumo de um relógio certo,

de nada vale, os ralhetes por causa do covid ou da febre,

ele apenas teme que os 84 anos lhe imobilizem as pernas

e não lhe deixem beber uma bica de manhã uma cerveja à tarde

no seu cantinho e pela volta dos pinheiros,

passo a passo, para depois amparar o descanso dos prédios,

com o vagar que só árvores fortes sabem apreciar,

e com isto, lá vai ele de chapéu posto, agarrado à rotina,

enquanto nós engodamos a vida com mais uns comprimidos.

 

minha querida mãe,

em intervalos de sete luas visita as urgências hospitalares,

hoje a lua está cheia de preocupações, agonias, palpitações.

custa-me vê-la a desaparecer nos corredores do hospital,

sem poder fazer nada,

depois do segurança me impedir de passar a linha amarela,

deixei-a ir como uma sombra outonal delicada

a seguir uma linha imaginária indicada pela enfermeira,

para aguardar numa sala pejada de suspiros impacientes.

 

como filho, vê-los assim, arrancam-me o coração pelo boca,

tenho saudades do tempo em que nos julgávamos eternos,

em que tudo era solúvel em nuvens de papel vegetal,

agora sinto-me inconsequente em espasmos verbais,

solitárias implosões de antidepressivos,

sem engenho para moldar-me à melodia do amanhã,


em menino, lembro-me da facilidade com que fazia castelos de plasticina,

naquela altura  era mais fácil sonhar.

contudo, depois de esperar 6 horas nas urgências pela minha mãe,

um rasto de esperança aquece-me as mãos;

enquanto o sensor de movimento das portas do hospital impõe o seu ritmo.



 


domingo, 9 de agosto de 2020

Bufo-real - um encontro inesperado



Nasci assim, míope num grau um tanto ao quanto acentuado e com o passar dos anos tenho reunido outras maleitas que me vão deixando mais conformado e ao mesmo tempo mais conhecedor dos meus limites. De certa forma, é bom saber até onde pudemos ir, e surpreendermo-nos amiúde ao ultrapassarmos algumas barreiras. Como tal, reconheço que não sou um grande observador de aves, muitas vezes não consigo ver aquilo que está a um palmo à frente do meu nariz. Confesso que não penso muito no assunto,  e até gozo com a situação entre amigos, ao ponto de lhes dizer: "se eu não estiver a ver o animal, tirem-me a máquina da mão e fotografem que eu depois cá me amanho e tento descobrir onde está o bicho".  

Para mim estas saídas fotográficas funcionam como terapia social. Alinho nestas aventuras mais pela camaradagem do que pela competição,  obviamente sou apreciador de uma boa fotografia (seja lá o que isso for), contudo, ciente que sou vesgo e mais lento que a minha sombra cansada.

Felizmente, não somos todos iguais. Tenho camaradas de olhar aguçado e treinado que conseguem detectar a mais ténue movimentação  numa árvore. Outros, de velocidade tamanha, dão  passadas mais rápidas do que o meu folgo me permite imaginar. Às vezes até fico a modos que exaurido de os ver a subir ladeiras com a maior ligeireza, enquanto o meu coração me aconselha prudência e caldos de galinha.  

Os meus amigos sabem que estes meus defeitos de fabrico me tornam mais parcimonioso na capitulo da destreza. Por vezes, neste "jogo de esconde-esconde." sou o último a ver e o último a chegar. E com isso estou plenamente consciente do quão amador sou no reino da fotografia de natureza. Todavia, não busco a melhor fotografia do mundo, antes a história do falhanço de uma mera fotografia. Acredito que a luz nos conduza a vários caminhos, o que nos permite várias interpretações ou múltiplas histórias. 

Estou conformado que não vou fazer deste passatempo o meu ganha pão. Pois sei que não é daqui que advém o meu sustento. Todavia, em certos dias, é aqui que vou buscar forças para ir trabalhar laboriosamente a seara computacional. Aqui estou pronto a falhar - Cardiovascular - Miope, a vida é feita de fraquezas, compete-nos a nós lidar com elas, dando a volta ao texto da melhor maneira possível. Daí vem o gosto pela fotografia e a sua capacidade para nos surpreender com o silêncio dos seus intervalos.

 
Ao terceiro mês da pandemia em que pensavas tu naquela tarde?  

"- O impiedoso cerco do covid-19, máscaras, álcool-gel, zaragatoas. Ah sabe tão bem o contacto com a natureza. "

Foi uma autêntica surpresa o que aconteceu naquela tarde na Serra de Sintra. Tínhamos reunido um grupo de amigos para tentar fotografar o rouxinol-do-japão.  Chegámos ao local e calcorreamos veredas de mato fechado em busca do pequeno rouxinol mas apenas o ouvimos (ou pensámos que o ouvimos) no meio de tantas toutinegras e outos piares.  O local estava pejado de libelinhas calopterix-cobre (Calopteryx haemorrhoidalis) que ocupavam as erupções soalheiras das silvas. O calor era muito e a sombra bem vinda o que me deixava sequioso por descanso. Fizemos mais de seis quilómetros entre risos e teimosias em busca de uma pequenina ave. Não a vimos. Antes de darmos por concluída a nossa busca observámos um açor (Accipiter gentilis) a voar sob nós sem piedade pelo nosso irremediável espanto. O açor passou por entre árvores, tirei três fotografias e mais não consegui.

Seguimos em frente, para admirar as manobras de distração de um bútio-comum (Buteo buteo) com intuito de afugentar do seu território potencias predadores. Procurei o significado da sombra perto de umas árvores de ramos tortos e fantasmagóricos. Achei piada a curvatura do tronco quase fêmea.  Porém, havia algo que não estava dentro do espectável. Um relevo estranho desafiava qualquer protuberância ou o seguimento natural do  tronco. Não podia ser... ainda para mais mexia-se! Aquela massa críptica acastanhada perscrutava os meus movimentos em suaves rotações. Não acredito... com dois pontos brilhantes assemelhando-se uma lanterna viva que quase obrigava a árvore a curvar-se. Não era o tronco que se movia mas sim uma majestoso criatura. Intrigado com aquele composto árvore-bicho aproximei-me e foi nesse instante que constatei o que me era dado a observar em homenagem a todos os míopes turbulentos .

A uns escassos 5 metros, um bufo-real (Bubo bubo) perscrutava as minhas intenções.  Fiquei sem fôlego.  Tirei duas fotografias com medo de o afugentar e gesticulei para chamar os meus companheiros. Inicialmente ninguém  percebeu. "O que estará ele para ali a acenar?" Eu esbracejava, tentava comunicar sem grandes espalhafate e quando abria a boca... As palavras eram articuladas num  estranho código onde comia vogais e esticava consoantes O primeiro amigo a chegar não conseguiu ver o animal, enquanto eu repetia: "ali, ali, na terceira árvore à tua frente". Não sou a melhor pessoa para das indicações e tirei-lhe a máquina da mão disparando suavemente. O bicho não se incomodou com as nossas hesitantes figuras. Chegou mais uma amigo que conseguiu descortinar o animal bem camuflado no tronco da árvore. E foi esse companheiro que direcionou o olhar do primeiro para que todos víssemos a sua majestade bufo-real, uma das maiores aves de rapinas nocturnas da europa. O bicho deixou-se fotografar até filmar, para depois se cansar com a nossa inépcia para revelações cinematográficas e debandou sem se ouvir uma folha cair. 

Olhámos uns para os outros e não nos abraçamos por que a pandemia não deixou. Parecíamos putos que tínhamos ganho um berlinde abafador e que agora o mundo do faz-de-conta passaria a ser nosso. Para comemorar a nossa tremenda sorte esquecemos o rouxinol-do-japão e fomos beber uma cerveja, celebrando assim este momento inesquecível em estranhos tempos de viros e confinamento também ele cerebral.

O misterioso bufo-real na encantada Serra de Sintra.









M22

  Uma lágrima faz estremecer o vinco do lençol imaculado como uma flor ainda sem nome, há dias em que as palavras são audíveis rasgos ...