sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Quebra-ossos - Lammergeier



Esta foi a segunda viagem que fizemos até Solsona, em Espanha, para tentarmos a nossa sorte com o quebra-ossos. Da primeira, ave sobrevoou o abrigo sem poisar, porém desta vez a história foi diferente.  

Chegámos ao abrigo situado num planalto árido de Solsona e de imediato alojámo-nos consoante as nossas possibilidades, no que mais parecia ser a "cabana dos 3 porquinhos". O espaço era exíguo com paredes de madeira laminada, mas que serviu para acomodar, sem apertos de maior, 3 pessoas com tripés, máquinas, objetivas e mochilas. As cadeiras eram confortáveis para as longas horas de espera que se adivinhavam. À nossa frente, estendia-se horizontalmente um vidro de cristal que funcionava como janela para o exterior, sem denunciar a nossa presença, dando-nos uma visão abrangente das movimentações nas redondezas. Lá fora o Juan, o nosso guia, preparava o chamariz e espalhava coelhos mortos e grandes ossos de forma aleatória. Ainda estava o Juan a arremessar a carne pelo perímetro do abrigo, já os grifos poisavam sem vergonha, aguardando vez para atacar tamanha iguaria. Contudo nós não queríamos grifos!

O Juan saiu de cena e os corvos vieram agoirar o local medindo forçar com os resilientes abutres. As primeiras duas horas inventámos narrativas e abordagens fotográficas com os bichos que tínhamos à nossa frente  e que se banqueteavam com a carne que fora deixada à sua disposição. Corvos e grifos, grifos e corvos. O som era de festim sanguinário e carnificina; os coelhos branquinhos eram desventrados pelos bicos aguçados das aves, numa guerrilha pela pose do melhor bocado. Corvos contra grifos, os bichos gladiavam-se numa luta entre a soberba e a gula, num bater de asas com lampejos negros e gritos de guerra. Não satisfeitos com a bulha, as aves negras subiram para cima da "cabana  dos 3 porquinhos", e bateram com as patas ferozmente, como se estivessem prestes a despedaçar o telhado que nos servia de abrigo. Duas horas depois, confesso que já estávamos fartos de corvos e grifos, queríamos outra coisa! 

E assim procurávamos nas altitudes um sinal, uma sombra do tão almejado quebra-ossos. De tanto esquadrejar os céus, as nossas preces foram ouvidas, e lá longe entre a cordilheira dos Pirenéus e as nuvens cinzentas, uma pequena silhueta lentamente ganhava a forma dos nossos desejos. O planar suave do quebra ossos, imperial deu várias voltas ao abrigo, circundou o cenário e aterrou. Diria que a medo. Apontei a máquina de filmar para a cena e com a máquina de fotografar dei fogo ao disparador até que os dedos me doessem. Pelo azar das outras vezes e por cada quilometro que fizemos desde Lisboa até Solsona, redimi-me do cansaço e do silêncio das viagens, fotografando a alma dos bichos que já foram pedras.

O Gypaetus barbatus tem vários nomes comuns pelo qual é conhecido, entre eles: lammergeier, abutre-barbudo, abutre-dos-cordeiros ou abutre-das-montanhas. Esta ave necrófaga apresenta uma envergadura de asas de 3 metros, 8 quilos de peso e mede pouco mais de 1 metro de comprimento. A sua dieta alimentar é feita à base de medula que extrai dos ossos. Se conseguir, não se faz rogado e engole ossadas inteiras, sem cerimonias. Caso contrário, eleva os ossos nos céus para depois os deixar cair sobre as pedras.


Desde os Pirenéus, aqui fica banquete do quebra-ossos, segundo um desesperado Lusitano fado.





O ganhar terreno do quebra-ossos entre a escassa vegetação.



Depois de encontrado um osso é só engolir


De papo quase cheio, as regras de etiqueta não são para aqui chamadas...


Ingerir depressa antes que os outros roubem esta oportunidade.



Depois o quebra-ossos teve que defender a sua posição no cenário de guerra


Os corvos não se sentiram intimidados e reclamaram o seu quinhão.


E chega para lá… passaram a ação com um bicada cirúrgica, 



Toca a fugir daqui para fora…



Quem ri por último...




Não fica mal este novo disfarce?





Quem te julgas tu?


Eu estou a ouvir os "3 porquinhos" dento da cabana...


Retratista, quem eu?


Há coisas difíceis de engolir!



De voo triunfante com um pau nas garras....














Agradecimentos:

José Frade
Luis Arinto
Juan
Carles


sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Abutre-barbudo e a esperança



Gravei este pequeno filme em Solsona nos Pirenéus, onde o quebra--ossos é o protagonista de uma esperança secreta. Quem sabe se um dia voltaremos a observar esta magnifica ave por Portugal? Os animais não reconhecem fronteiras logísticas apenas condições ideais para a sobrevivência.  Aos amigos que me acompanharam em mais esta aventura, Frade e Arinto, o meu obrigado.

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Ninho

o meu dia e o meu grito primordial
cabem dentro desta fracção nocturna,
após esgotar-se a última luz do vaga-lume digital
recolho as sombras do espaço inquinado de mim.

desta janela mal desenhada onde se derramam
cortinas de pestanejar ventoso
e sombrias árvores mais solitárias que o depenado melro,
oiço o pranto da noite maior com os seus desacatos citadinos.

faz frio como se me desventrassem da casca às raízes,
procuro a manta alentejana numa nudez aflita de aconchego,
pela busca desse cantinho sombrio que julgo único;
a cama é um corpo celeste de rápido desgaste e suave sedução.

em fetal desventrado ilusório tento tecer o sonho
e quem sabe alcançar com o ultimo dedo,
anéis de outra lua.

sábado, 5 de outubro de 2019

sete degraus


nas paredes do sótão oiço infra-ruídos,
negações de oratório desumanas vibrações,
passos desconcertantes, calúnias irritantes,
saltos demoníacos tamanhas provocações.

num tremor irascível crescente viscoso,
seja noite ou dia a amanhada besta arranha
e os grilhões deslizam pelo soalho bolorento,
assim o demónio de trazer por casa vive sorridente.

as tábuas gastas vergam-se ao peso do imundo ruído,
não… não ouso subir os sete degraus das escadas de pinho podre,
com a chave enferrujada abrir a fechadura da portinhola carcomida,
assim será 3 voltas para a direita e uma para esquerda, qual doce susto.

descobrir que no meu sótão habita o branco demónio
com que num trago me aninho em 10 miligramas de paz.

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Em busca da Gaivota-de-franklin (Leucophaeus pipixcan)



Saí do trabalho alguns minutos após a meia-noite, depois de carregar a bateria da máquina, esvaziar um cartão de memória, deitei-me após as duas e às cinco e meia da manhã já o despertador tocava lá muito ao fundo.
Sem ter tempo para aquecer as almofadas, levantei-me estremunhado, passei água pela cara, não reconhecendo o tipo ensonado que do outro lado do espelho fazia caretas, despachei-me, agarrei na mochila e desci as escadas. Lá em baixo já tinha à minha espera o meu amigo Frade, pelo caminho ainda apanhámos outros companheiros de aventura como os amigos Arinto e Humberto. Destino Vila Nova de Milfontes. O objetivo seria fotografar a gaivota-de-franklin ou gaivota-das-pradarias (Leucophaeus pipixcan). 

Quanto ao fenótipo, esta ave assemelha-se a um guincho, sendo que a principal diferença reside nas pontas pretas das asas. Confesso que não tenho um grande fascínio por gaivotas, contudo por se tratar de uma raridade em Portugal, fez-me esquecer as poucas horas de sono. Já para não falar da agradável sensação de revisitar a terra do meu pai (Odemira), incentivo maior para ver boa gente e confraternizar entre amigos, 

Chegámos às 8:15 a Vila Nova de Milfontes onde o amigo Rui Jorge aguardava-nos pacientemente. Às 8:30 embarcámos na expedição conduzida pelo André Albino da Bture. Principiávamos assim a busca pela gaivota que se escondia nas margens do rio Mira. Sem enjoos ou sobressaltos (houve homem prevenido que emborcou um comprimido para o enjoo), o barco subia o rio deixando antever as margens de uma bucólica paisagem. Nesta sexta-feira de Agosto as águas estavam concorridas com várias embarcações de recreio e pesca lúdica, tal como treinos de canoagem. O que vem comprovar as excelentes oportunidades que o local oferece desde que sejam respeitado o equilíbrio dos ecossistemas e a sustentável convivência entre o homem e a natureza. 

Passados alguns minutos, avistámos a gaivota nos seus ensaios de voo e repouso. O barco fez a manobra de aproximação para que nós pudéssemos registar a ave com alguma proximidade e luz favorável. Foi tempo de sorte e de muitos cliques. O que retenho destas viagens é o convívio saudável entre as pessoas com as suas diferenças e motivações. Observar, fotografar é apenas um pretexto para conviver e partilhar experiências que de outra forma não passariam de um distante "ouvi dizer". Claro, quando os objectivos são alcançados o caminho de regresso torna-se num suave embalo de sorrisos.




Eis o salto suspenso da gaivota e a alentejana luz que a desenhou:






Ainda observámos outras aves como esta garça-real sentinela de um  porto privado.

O percurso efectuado.



Aos reflexos matinais do rio Mira.




Os amigos da gaivota.






Agradecimentos:

Alexandre Cardoso
André Albino / Bture
José Frade
Luis Arinto
Humberto "Hermenegildo"
Rui Jorge
Samuel Patinha





quinta-feira, 18 de julho de 2019

A dança do abutre-preto

O abutre-negro (Aegypius monachus) é a maior ave de rapina da Europa e infelizmente está "criticamente em perigo" no nosso território. Actualmente, estima-se que existam pouco mais de duas dezenas de casais, estando os mesmos confinados ao Baixo-Alentejo e algumas zonas especificas do Tejo e Douro Internacional. Contudo, nestes últimos anos, existe um aumento gradual de indivíduos desta espécie proveniente de Espanha, beneficiando de medidas de conservação e sensibilização sempre bem-vindas, para que não se esqueça a importância desta ave necrófaga. 

Fomos até Villanueva del Fresno visitar o nosso amigo Alfonso para assim tentarmos a nossa sorte num abrigo especialmente concebido para observar aves de rapina. Pelas 07:00 da manhã entrámos no abrigo fotográfico da Naturalqueva e entregámo-nos a um jogo de espera e paciência, intervalado por alguns falsos alarmes e dores de barriga. Às primeiras horas da manhã apareceram várias dezenas de milhafres (Aegypius monachus) e duas cegonhas (Ciconia ciconia), algo que nos entreteve durante algum tempo, incentivando a pratica de fotografia em voo ou em modo de retrato. Depois, já a tarde se anunciava longa e quente, surgiu um bando de grifos e no meio deles os tão desejados abutres-pretos. Eram dois e como apareceram assim desapareceram numa timidez assustadora, talvez motivada pela névoa de pó levantada pelos refilões grifos. Os dois abutres-pretos, independentemente dos seus 3 metros de envergadura, eram mais recatados e temerários. Por sua vez, os grifos eram em maior número e acabaram por fomentar a debandada geral num alvoroço digno de registo. 

Passados alguns instantes, estava eu a com a objectiva 24-70 mm a fazer uns grandes planos dos milhafres, quando ao lado de uma árvore surgiu um abutre-preto que controlava a movimentação na clareira. Este abutre-preto assemelhava-se a um dançarino introvertido que temia pela sua entrada na pista de dança. Por seu turno, os milhafres continuaram a impor o ritmo da tarde e o abutre não se aproximou daquele circulo fechado de asas. Esta cena durou pouco mais de um minuto, o momento foi registado com algumas fotografias que me fizeram suspirar por mais, mas o abutre foi-se embora e com ele a vertigem soalheira daquela tarde. A dança continuou noutras latitudes e noutros instantes tão improváveis como este. Por aqui, tais dançarinos nunca se escusaram a dançar nesta moldura dimensional.


Os passos de dança do abutre-preto.







Os grifos apareceram num bando considerável e impuseram a lei do maior número.



Os milhafres movimentavam-se de árvore em árvore e foi tempo de trabalhar alguns registos em voo.





E por fim o vídeo do dia:




Agradecimentos:

Alfonso
José Frade
Luis Arinto





M22

  Uma lágrima faz estremecer o vinco do lençol imaculado como uma flor ainda sem nome, há dias em que as palavras são audíveis rasgos ...