terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Merzouga




Daqui contemplamos o maior deserto do mundo e perante a nossa pequenez sentimos que fazemos parte destes grãos de areia fina que agora nos aquecem os pés.
A aldeia Berbere de Merzouga anuncia a proximidade do deserto do Saara com dunas a perder de vista, recortadas pelo horizonte de variáveis humores. Fazemo-nos ao caminho e dirigíamo-nos para o hotel Yasmina com o carro a ser submetido às vontades do terreno irregular. Estávamos a entrar no deserto onde as dunas ganhavam formas gigantescas e a estrada era um rude caminho que se fazia de forma trôpega, até que a nossa viagem sofreu um revés. Antes de chegarmos ao hotel o carro ficou atolado. Saímos da viatura e observámos o dano. O pneu da frente fora engolido pela areia.  Numa imensidão solitária as ondas de calor deformavam a paisagem da qual não se vislumbrava vivalma. As dunas alaranjadas pareciam mover-se, serpenteavam e ondulavam-se como as curvas de um animal subterrâneo. Metemos mãos no areal para tentar libertar o pneu mas os nossos esforços foram em vão.




A impiedosa força do sol rondava os 42 graus. O calor colava-se às palavras e diminuía o seu significado. Nós tentávamos a todo custo esgravatar na areia mas o carro estava imobilizado não dava mostras de ceder à vontade do deserto. Esforçávamos a chave na ignição e os desesperados pneus originavam pequenas explosões de areia sem que viatura se move-se um milímetro. O tempo passava a correr pelo meio das dunas e ainda faltavam alguns quilómetros até chegar ao hotel. Urgia encontrar pedras que pudessem alavancar o esforço motor e desimpedir as rodas dianteiras da areia. Vasculhámos as redondezas em busca por calhaus, todavia apenas encontrámos rochas de pequena dimensão. O sol toldava-me a percepção e foi nesse instante que olhei de soslaio e surgiram das dunas, até então desertas, seis homens altos e despachados. Todos eles de rosto tapado e com indumentária típica para fazer face às agruras do deserto. Tuaregues piratas? Seria uma miragem? Não… As Miragens não imitem som! Aquelas criaturas sibilavam uma ladainha e aproximaram-se com uma rapidez digna do portador das chaves do Saara. O receio apoderou-se de nós e fez-nos temer o pior. Porém, aqueles homens desfizeram qualquer dúvida sobre as suas intenções e prontificaram-se a ajudar.

Sugeriram-nos que não utilizássemos pedras e começaram a escavar em torno das rodas dianteiras do carro. Passados alguns instantes, um deles ocupou o lugar do condutor e de forma exímia desferiu valentes guinadas e acelerações que fizeram os pneus ganhar força para se livrarem da areia. A viatura libertou-se. Para demonstrar a nossa gratidão, e a pensar que seria suficiente, demos 200 dinares ao condutor que tinha desatolado a viatura. O que não esperávamos é que todos eles estendessem a mão a pedir mais, muito mais. Longe de nós pensar que seríamos apelidados de forretas e mal-agradecidos! Depressa a situação descontrolou-se. De mão estendida todos eles pediam dinheiro, vociferando sons que não entendíamos o significado.



Este cenário era digno de uma qualquer série de ficção: As mãos dos zombies entravam pelas janelas do carro, enquanto se ouviam gritos na ânsia de mordiscar a carninha dos vivos; neste caso não existia televisão e a realidade pegava-se ao céu-da-boca. De forma célere saímos dali numa nuvem de pó. Por fim, longe, pensámos que os tínhamos deixado para trás e soltámos sorrisos de adrenalina. A alegria durou pouco. Com o medo no colo, vimos surgir das dunas o mesmo grupo de tuaregues, desta feita montados em potentes motos todo-o-terreno. Mas a perseguição ficou por ali, retribuíram uma gentil saudação de despedida e cada um seguiu o seu caminho. Com os lábios secos de fuga lá fomos nós em direcção ao hotel Yasmina.






Yasmina Hotel Merzouga, Erg Chebbi: Átrio fresco e deslumbrante com mármores variados e imponentes pilares com adornos de mil e uma noites.  Depois de preenchermos a papelada, dissemos ao que vínhamos e questionámos se o hotel teria serviço de observação de aves. Nem sim nem não ou então não entendemos a resposta. O que é um facto é que no dia seguinte fizemos a mesma pergunta e a resposta foi afirmativa. Logo marcámos uma saída com o intuito de fotografar algumas aves típicas da região.

No dia 13 de Maio, às seis da manhã, já percorríamos as dunas conduzidos por um tuaregue com perto de 2 metros. Nós permanecíamos em silêncio tumular, enquanto o enorme tuaregue sintonizava incessantemente o rádio ao mesmo tempo que acelerava ferozmente a viatura; fazendo o volante parecer um guiador de um carrinho de choque. Do tuaregue nunca lhe vimos o rosto, apenas contemplamos o olhar evasivo e as enormes mãos em forma de raquete de ténis, porém, ficámos com a sensação de tratar-se de boa gente, incansável na sua busca.





Os saudosos mergulhos na piscina com o que restava do tempo.


Foto de grupo depois de um tour pelo deserto em busca da passarada.


Durante horas o carro com tracção às 4 rodas desenvencilhou-se das dunas e das suas cristas arenosas que de outra forma não seria possível. A dada altura ficámos com a sensação de termos saído do país e entrado numa dimensão cinematográfica. Areia e mais areia, enquanto o rádio regurgitava música árabe bem ritmada. Para quebrar o gelo ofereci uma bolacha ao guia que declinou gentilmente dizendo "Ramadan". Passados alguns quilómetros, no meio do deserto surgiu um berbere com uma t-shirt do Batman que fez parar o carro. Em tamaxeque falaram apressadamente, escusado será dizer que ficámos a imaginar o que eles estariam para ali a falar. Depois seguiu-se um momento de tensão. O nosso guia dirigiu-se a um buraco escavado na areia a fazer lembrar um poço. Mirou o fundo e volveu o olhar para nós. Engolimos em seco com as possibilidades que nos passaram pela cabeça e as mórbidas capas de jornais que dariam. "Portugueses encontrados num buraco no deserto".  Parvoíces ficcionais e preconceitos à parte, o nosso guia gigante voltou ao carro. Suspirámos uma, duas… cinquenta vezes de alívio.

Voltámos ao caminho e volvidos alguns minutos ouvimos um bando de aves: eram os cortiçóis. Alucinação ou realidade? No meio do deserto vimos passar um homem carregando um jerricã  - Será que as aves tinham bar aberto? Saímos do carro, lentamente aproximamo-nos de uma poça improvisada e tentámos a nossa sorte. Sedentos, os bandos de cortiçóis e gangas malhadas voavam em torno da pequena charca e nós agachados tentámos chegar o mais próximo possível.


A sede e o banho - cortiçol-coroado (Pterocles coronatus)







A corrida para ver quem chegava primeiro à charca. A pose triunfal das gangas-malhas seguidas de perto pelos cortiçóis-coroados.



A agitação esvoaçante em torno de um pouco de água.




A derradeira ida à charca para matar a sede dos cortiçóis-coroados.


Os diversos voos da ganga-malhada (Pterocles senegallus)




O enquadramento da paisagem entre aves, dunas e o casario.


Depois de beber, o bando de ganga-malhadas e cortiçóis-coroados percorriam as arestas do deserto em busca de uma sombra em forma de tesouro.



A conjunção de cor entre aves e dunas.



Para o chasco-de-barrete-branco (Oenanthe leucopyga) não havia tempestade de areia que o detivesse.  Esta era uma das aves que voava nas imediações do hotel, sem medo dos humanos e dos seus disfarces.



No deserto e na escassa vegetação arbustiva encontrámos esta fantástica borboleta rainha-africana (Danaus chrysippus).


Por aqui, as aves do têm a particularidade mimética de se confundirem com o meio e só o seu movimento repentino as denuncia. Este corredor (Cursorius cursor) acompanhou o carro em passo de corrida para depois parar atento às reações.


O juvenil foi mais destemido e quase espreitou para o interior da viatura.


Na estrada que dava acesso ao hotel observámos os corvos do-deserto (Corvus ruficollis) nas suas explorações entre dunas e os resilientes camelos.




O curioso olhar da toutinegra-do-deserto-africana (Sylvia deserti)


O abraço solar da calhandra-de-bico-curvo  (Alaemon alaudipes)


 O pardal-do-deserto (Passer simplex) não foi fácil de descobrir, mas o nosso guia lá quebrou o enguiço e encontrou a ave, depois observámos esse pardalito em diferentes ambientes



Logo eu, tamanho cegueta, a antítese perfeita de observador de aves, naquele momento fui bafejado pela sorte. Foi assim que sucedeu: No longo caminho para o hotel a minha bexiga começou a dar sinais de algum aperto e tivemos que parar para satisfazer tais necessidades, ora foi nesse instante que observei um passarinho a sair do arbusto, intimidado pela repentina chuva. Aquela ave era a fuinha-dos-espinheiros (Scotocerca inquieta). Fazendo jus ao nome, de facto, um bicho bastante inquieto, voando de árvore em árvore, até parar num pequeno espinhoso arbusto onde se escondeu. Nós ladeamos o emaranhado de raminhos, que não media mais de 30 centímetros de diâmetro, e esperámos que o bicho viesse espreitar. Aqui está ele em tímida inquietude.



No final do dia fizemos uma visita ao lago Dayet Sriji onde contemplámos o voo sincronizado dos patos-casarca (Tadorna ferruginea)


Pelo caminhos que ladeavam a piscina e os muros do hotel, este sapo (Sclerophrys mauritanica) tentava adivinhar a nacionalidade dos hospedes que o tentavam oscular.


Nas nossas saídas pelas estradas de terra batida eram vários os lagartos-de-cauda-espinhosa (Uromastyx acanthinura) que tentavam desafiar a afiada vegetação.


A fala da árvore - entre a flor e o fruto - um diálogo no deserto.


Merzouga vale também pela sua gastronomia da qual posso destacar esta fantástica salada servida de forma apelativa.


E porque não… uma saborosa tagine de legumes?


E mais uma fresca e colorida salada. Recomendável! AQUI!


Alguns momentos em que as dunas ganham protagonismo nas suas cambiantes de luz e cor.


 A coloração da duna fica a dever-se ao óxido de ferro, sendo os pequenos grãos de areia constituídos à base de dióxido de silício. 


Com quase 730 metros anuncia-se imponente e quase intransponível Erg Chebbi, igualmente conhecida como as Dunas de Merzouga. 

E quando os desígnios dos ventos fazem das suas… Surge a mudança radical do tempo. O vento começou a soprar com maior intensidade e as nuvens ficaram carregadas de cinzento-escuro. Como um punho fechado prestes a soltar um temporal, o céu fechou-se escondendo as dunas. Os camelos sentaram-se e assistiram ao desenrolar feroz dos véus da tempestade de areia. 

O cenário colapsou, as construções abstractas, as pessoas e os animais desapareceram, ficando no ar uma cortante neblina que nos fazia engolir o medo, não nos deixando ver mais do que um palmo à frente dos olhos. A população local está habituada a estas mudanças climatéricas, contudo o bom senso apelava a que recolhêssemos ao hotel. 

Qual quê… Foi nesse momento que um português imprudente decidiu montar um tripé para gravar um vídeo em time-lapse do fenómeno climatérico; contou com a ajuda dos seus amigos que não o deixaram ir com o temporal. Resistiu a 20 minutos de ventos loucos e bofetadas de areia e lá conseguiu gravar um vídeo sofrível da tempestade. Todavia, como surgiu assim desapareceu, e num ápice o uivar do vendaval e as mãos de pó de sílica que nos cegavam deram por terminada a sua manifestação de força. A tempestade de areia acabou. De esperança renovada o sol libertou-se e com ele veio um corpo de luz a espraiat-se na curva das dunas. Volvidos alguns instantes, a realidade do deserto voltou a ser o que os olhos pintaram.



Um homem e a sua tempestade.



A travessia das dunas vivas.


                                 

O homem conta ao animal aquilo que o vento lhe segredou. 


Dos habitantes locais. Entre as mãos e as rugas fica um rosto num tear de tempo.


Depois do jantar fomos convidados a assistir a uma actuação de um grupo de tocadores de tambor. Os ritmos e as síncopes dos batuques tribais fizeram-se ouvir, ao mesmo tempo que uma fogueira cantava.


O adeus dos putos que sonhavam ser jogadores de futebol, hoje ninguém quer ser astronauta ou médico, só e apenas extraterrestre. 


Um andarilho dunar. 


Felizes!... Depois de um tour para observar aves no deserto do Saara. Os meus amigos Luis Arinto, o nosso guia que carinhosamente apelidámos de "Ramadan" e o Frade com o seu chapéu.


E na descoberta das sombras, lá andava em eu perdido pelos corredores sussurrantes de Yasmina.


De cansaço o sol despenhou-se num oásis e por lá ficou encantado.


Do reflexo surge o engano de quem é sombra e de quem a acompanha.


O astro rei e as suas manias de arrebol. 

Quando anoitece no deserto cada estrela é um catálogo de sonhos.


Em 3 dias tantas foram as aventuras. Num simples local tive oportunidade de realizar vários exercícios fotográficos, mas acima de tudo experienciei momentos únicos que quase não cabem na moldura da memória. Antes de partir deste oásis para outra dimensão, com os dedos a tremer escrevi na areia um segredo que os ventos conjugaram em voltar.





Agradecimentos:

Ana Frade
José Frade
Luis Arinto
"Ramadan"  Tocadores de tambor

Grupo de motoqueiros que nos desatolaram o carro






M22

  Uma lágrima faz estremecer o vinco do lençol imaculado como uma flor ainda sem nome, há dias em que as palavras são audíveis rasgos ...