segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

O livro dos desenhos voadores




Abro os estores e coloco o pesado corpo de 448 páginas sentado numa cadeira em frente à janela. Por instantes sigo o relevo do livro que parecia ganhar vida ao toque da minha mão. Abro-o e liberto-o como um fruto maduro dos equívocos solares. Arrasto a cadeira na procura da melhor luz, e direcciono a claridade para o centro das folhas indecentemente escancaradas. Uma vez afinado o ângulo deixo que os raios de sol revelem a cor escondida das penas dos bichos e das margens das plantas. Eu e o livro, nada mais interessa. Na quietude do espanto tento renomear o fascínio a que as imagens aludem. Sinto-me como uma criança domingueira, em frente à televisão, à espera dos desenhos animados - o novíssimo episódio do Flash Gordon e do Homens Falcão. 

Este livro é como um calendário e hoje fico-me por estas páginas. Não sou capaz de virar a folha e seguir em frente, também não queria. As imagens, para serem verdadeiramente compreendidas, têm o seu tempo de maturação e nojo. Hoje é segunda-feira - dia dos falcões. O desenho é estrondoso e quase não cabe na estampa que o revela. Dois belos animais dilaceram duas presas das quais saltam infinitas particularidades de fino recorte natural. Prostradas de dorso aberto e pescoço partido, as vítimas revelam a força do ataque aéreo. A brutalidade da morte e a glória do mais capaz escorre ensanguentado o bico afiado do predador. As garras enaltecem a terrífica volúpia dos selvagens. Tento tocar no desenho, e em sinal de aviso os falcões medem o meu gesto de aproximação. A riqueza dos pormenores agiganta-se reflectindo a sombra da cadeira às 9 horas da parede branca. As rapinas ainda têm fome e continuam a perseguir quem ouse desafiar tamanha beleza.

O livro é um monstro perfeito. Cada desenho é eternamente artístico e dramático. O traço é hipnótico e os detalhes encantadores - um autentico manjar para os sentidos. Dou como vencida a primeira hora, sentado no chão, em frente à cadeira, que exibe a nudez deste volume onde aves de rapina desenham círculos persecutórios sob a minha cabeça. Oiço silvos e o adejar das miragens, não pretendo interromper tais manobras, mas tem que ser. Num pulo levanto-me, sem olhar para trás, deixo os desenhos, a cadeira, os malditos falcões, o sangue, as pedras e as presas esburacadas ao raio da imaginação. Esqueço a fome de ter um livro por tocar. Amanhã, se Deus quiser viro a página. A sala fica deserta e o livro sentado queixa-se do sol e do esgotamento da casa. Enquanto o resto não voa, os homens Falcão fazem das suas.

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Texto inspirado no desenho Great-footed Hawk, do livro The Birds of America de John James Audubon.


Este foi um dos livros mais "caros" que adquiri, mas valeu a pena!
Nestes 435 desenhos (reduções das originais estampas com 99 cm por 66 cm), nada é deixado ao acaso. As aves estão muito bem desenhadas e com grande pormenor. Em cada pena em cada olhar, tudo obedece a um equilíbrio fantástico, numa combinação perfeita (às vezes em demasia) que dificilmente teríamos a possibilidade de observar na natureza. As cenas onde os bichos evoluem são encantadoramente detalhas, não falta nada; desde os ecossistemas, plantas, presas  predadores, tudo faz parte de uma rica interpretação da avifauna Norte Americana. Em pleno século XIX as limitações eram muitas para observar aves e John James Audubon não tinha guias de campo, binóculos ou máquinas fotográficas, apenas material de desenho e uma espingarda...

Este não é só um livro de desenhos. é também uma autêntica obra de arte! 

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Colibris de Monteverde


Santuário dos Colibris - Por estes lados a azáfama era grande e a vontade muita. Mal saímos do carro fomos alertados para não usarmos flash uma vez que perturbaria os bichos, aviso que respeitámos à risca. Cedo reparámos que estávamos perto de um  ninho de Piranga flava, uma vez que a ave se atirava contra o vidro do carro, quiçá em protesto contra o reflexo de um eventual concorrente. 

Situado em Monteverde na Costa Rica, o Hummingbird Gallery (creio que seja este o nome correcto) é um local que vale a pena visitar; tanto pela calma transmitida por intermédio da inebriante beleza natural, como pelos fantásticos colibris que por ali exibem todo o seu esplendor. 

Hummingbird Gallery engloba um pequeno pátio circundado  por um pequeno jardim, acessível por vários trilhos e ladeado por densa vegetação, próximo da entrada da Reserva Florestal de Monteverde. Está munido por vários bebedouros que fazem as delícias das aves e dos visitantes do local. Os colibirs não se incomodam com a nossa presença, antes com a aproximação de aves rivais. Por isso, podemos tirar fotos relativamente próximo das aves e em voo, preferencialmente aquando das manobras de aproximação aos bebedouros. Se quisermos, temos também uma numa pequena loja de apoio onde pudemos comprar recordações (livros caríssimos!!!) .

As viagens são um património único e valem pelas memórias dos momentos vividos e isso ninguém nos tira. São instantes preciosos que perduram intocáveis e quase sempre acessíveis à distância de um sorriso ou de um olhar mais introspectivo.

Equilibrando-me neste ponto do hemisfério, turista às vezes, lá estava eu sentado num banquinho de madeira, sem me preocupar com outras avarias, observando os traços imaginários desenhados pelo voo destas criaturas. De quando em vez, tentava tirar uma fotografia, mas o tempo era de contemplação, em silêncio, só interrompido pelo zumbido dos voos rápidos e vocalizações únicas.
O tempo não teve tempo, antes esplendor e memória.

Tecnicamente a luz era muito escassa e muito filtrada pela vegetação. Como tal, se queríamos congelar o voo dos colibris,  tínhamos que  fotografar com valores de sensibilidade bastante altos. Com a objectiva 300 mm de focal fixa, optei por iso 2000, abertura f4 e velocidade entre 1/250 e 1/600 e claro... nem sempre com muito sucesso.

Aqui relato as minhas tentativas de descrever estes magníficos interpretes do voar e das coisas imperdoavelmente simples.




Um dos maiores colibris da Costa Rica - violet sabrewing Campylopterus hemileucur




O  lesser violetear Colibri cyanotus era um dos colibris que mais aparecia para matar a sede




Os colibris estão entre as aves mais pequenas do mundo. Quanto ao pequeno Heliodoxa jacula parecia ser o responsável pela fragilidade dos troncos.





A cadência do bater  de asas dos colibris pode atingir as 60 vezes por segundo. Em voo surge o purple-throated mountain-gem Lampornis calolaemus, seguindo-se o mesmo colibri com outra luz e  outros reflexos, por fim temos a fêmea por detrás de uma névoa de vegetação.



Quanto à frequência cardíaca destas aves situa-se entre os 500 a1200 batimentos por minuto. Em torno dos bebedouros existia uma suportável convivência entre o bananaquit Coereba flaveola e o violet sabrewing Campylopterus hemileucur.



A cor destas aves resulta da refracção da luz e não de uma pigmentação específica Este colibri, stripe-tailed hummingbird Eupherusa eximia, oberveio-o perto dos bebedouros do santuário de Monteverde, contudo estas fotografias foram feitas num jardim de San Gerardo de Dota, uma vez que ficaram com uma luz bem melhor.



O steely-vented hummingbird Amazilia saucerottei foi registado, tanto perto da casa onde estávamos hospedados, como no santuário, porém prefiro a foto do colibri tirada no primeiro local.



Estes bichos são rápidos e podem atingir os 72 quilómetros por hora. Sinceramente, pretendia fotografar a ave Lampornis calolaemusmas o foco da máquina decidiu que era melhor registar a vespa e sem querer fiz-lhe a vontade.

Agora outras criaturas:




Este hepatic tanager Piranga flava defendia de forma aguerrida o seu território contra intrusos de 2 patas e 4 rodas.

           

O tímido common chlorospingus Chlorospingus flavopectus veio esconder-se debaixo do carro e nós dizemos-lhe: Olá Tico!

Termino este artigo com uma foto do meu amigo Frade, numa composição entre
o reflexo e a busca das aves coloridas.







terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

3 Cartazes à beira da estrada




Uma qualquer segunda-feira pelas 16:30

Estavam oito pessoas na pequena sala do cinema Monumental para assistir ao filme do momento do realizador Martin McDonagh. Sentei-me confortavelmente ao lado de uma cadeira que tinha um papel preso com fita-cola com o aviso de “avariado”, achei piada e descansei sobre ela o casaco e a mala e esperei que a cadeira se desmanchasse. Avariado por avariado, estava no lugar certo, pensei eu no esconso cantinho do cinema. Minutos depois o grande ecrã  ganhou animação e iniciou-se o terramoto vestido de comédia negra.

Vamos por partes:
O filme relata as manobras de uma mãe para não deixar cair no esquecimento o desaparecimento da filha, violada e assassinada à beira da estrada. Para tal, aluga três cartazes, situados precisamente nesse malfadado caminho, nos quais  manda inscrever um alerta. As palavras incisivas têm um destinatário. Mais concretamente, o respeitado xerife (Woody Harrelson), também ele a braços com um problema de difícil resolução. Inicia-se uma escalada de violência entre as autoridades e a estratégia de revolta maternal levada a cabo por Mildred, onde imperam diálogos fortes e actos cruéis. Já agora, o karma é "complicado", só para calar uma birra adolescente, que nunca ninguém ouse dizer a uma filha que espera que ela seja violada e azar dos azares...

A sombra do crime cobre a paisagem rural e suspende o tempo mas não a memória. A louca doçura maternal, tão ingénua quanto escondida, faz do sofrimento paródia e assim se avança. A busca do assassino processa-se de forma desajeitada e sem rumo, dando a entender que "alguém" tem interesse em que nada se descubra. 

Impressionante representação de Frances McDormand no papel da mãe Mildred. Cruel, engenhosa e maquiavélica, todavia com um sentido de humor fascinante e revelador de um coração solidário. Mas calma... nada de cenas de levar às lágrimas o calhau mais gelado. O filme acaba como se cortassem a luz do cinema e o projector abruptamente caísse aos trambolhões sobre as cadeiras avariando algumas cabeças. E num instante sai da sala com um alívio secreto para com os meus erros e defeitos. Afinal, existe culpa superior à minha, e ainda para mais, com uma estrada interminável pela frente.

M22

  Uma lágrima faz estremecer o vinco do lençol imaculado como uma flor ainda sem nome, há dias em que as palavras são audíveis rasgos ...