segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Impulsividade de relojoeiro


Na goela irrompe a fúria deste vulcão portátil,

a lava é o sangue ferruginoso que queima a garganta,

na boca, uma arma com canos serrados tem o gatilho pronto,

a qualquer momento faço explodir o espelho da paciência,


já está! solto a ira numa cega saraivada de disparates,

não sobra palavra, livro ou perdão depois desta vaga,

digo o que quero e o que não ouso imaginar,

rubro, enraivecido, espezinho, enxovalho quem ousar!


Mas depois vem a queda.

engulo o vidro cinzelado do arrependimento,

assumo a culpa arrancando com os dentes as crostas dos muros,

a calma só volta com o silêncio da pedra.


voltas e mais voltas na cama, à procura de uma desculpa para onde desertar.


sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Chapim-carvoeiro em teletrabalho



A tarde de ontem chegava ao fim, contudo, o dia de teletrabalho obrigava-me a mergulhar os neurónios no monitor para tentar perceber o que nem sempre é óbvio. Virtudes do cansaço. Era melhor fazer uma pausa antes que desse asneira o que tentava bulir com esforço inglório. Assumei-me da janela, um minuto foi suficiente para sentir a liberdade das árvores, a bofetada do vento, o corrupio do chapim-carvoeiro e de todos outros bichos que nunca viram um relógio, nem entendem o significado do tempo não voltar para trás.

A forma como a ave subiu os ramos fez-me sentir inveja da sua coragem e batimento cardíaco. Voltei para a lógica do monitor, menos binario, menos máquina avariada, até que fosse meia noite num lugar qualquer.

domingo, 11 de fevereiro de 2024

A pedra azul







As pedras das chacras respiram em cima da mesa de cabeceira,

enquanto a imunoterapia é inoculada na tua mão,

no hospital, há olhos de esperança que já foram rios de lágrimas,

ao mesmo tempo, o respirar da doença faz estremecer paredes já sem sombra.


nos cadeirões os pacientes aguardam que o químico ocupe o corpo,

amanse o mal, abra portas, prolongue a hora para além a rua do mundo;

não te posso fazer companhia,  por isso viajo para a sala de espera,

onde aguardar não dá tempo que o pó dos anjos contorne a nossa fé.


quando acabou o tratamento fui buscar-te,

tiraram-te o cateter e marcaram no teu cartão a próxima visita, 

peguei-te na mão, porém, amanhaste o caminho sozinha,

antes de sair, desejei as melhoras aos ocupantes das máquinas salvadoras.


na ambulância de doentes não urgentes lembrei-me de uma senhora 

de lenço na cabeça que estava num cadeirão ao teu lado,

tinha um olhar fixo entre o céu primaveril e o azul marinho,

olhos tão frios quanto perdidamente belos. a senhora ficou lá... 


em casa, as pedras aguardavam um toque para se animarem.





sábado, 10 de fevereiro de 2024

Tempestade Karlotta



Hoje de manhã, depois da trégua da chuva e do vento, os pequenos bichos tentavam alimentar-se enquanto o tempo assim o permitia. O meu dia de trabalho tinha terminado às 08:00, contudo, não resisti a registar desde a janela da cozinha, os movimentos acrobáticos da estóica trepadeira, que fez frente à uma qualquer tempestade Karlotta, com um bater de asas das suas impressionantes e pesadíssimas 12 gramas. Depois retomei o pequeno-almoço e deitei-me a pensar nos grandes feitos anónimos daqueles que respiram mais um dia.

M22

  Uma lágrima faz estremecer o vinco do lençol imaculado como uma flor ainda sem nome, há dias em que as palavras são audíveis rasgos ...