terça-feira, 21 de dezembro de 2021

A águia-de-bonelli pelo planalto Mirandês

 

Terras de Miranda, outubro de 2020. O outono não dava sinais da sua chegada. Por estas terras as temperaturas estavam amenas e céu luminoso. A vertigem dos vales e das escarpas acidentadas, com gargantas de pedra afiada, deixam antever a força do rio Douro. Pelos íngremes penhascos os ecos perpetuavam-se no tempo com arrasto de múltiplas repetições. Uma palavra aqui dita é recapitulada até se perder na próxima curva do rio. O Douro transportava a saudade numa voz sussurrante e nós éramos pequenos espectadores deste anfiteatro pétreo. Esta serpente líquida que se agigantava aos meus pés, sulcava as escarpas da montanha com o seu dorso dourado. Ao longe  contemplava alguns bichos que reclamavam estes tronos montanhosos. Entrei num abrigo de madeira, montei a minha máquina de guardar momento e deixei-me estar quieto. Passados poucos instantes chegou a águia dona destas escarpas. 

A águia-de-bonelli ou águia-perdigueira (Aquila fasciata) é residente no nosso território. Pode ser observada a norte, onde constrói ninhos em escarpas e a sul, onde nidifica em árvores de grande porte. É uma ave de rapina cuja a envergadura pode atingir 1,65 metros e pesar até 3 quilos. A vocalização assemelha-se ténue latido.   

O casal das águia-de-bonelli caça em conjunto e alimenta-se de coelhos, ratos, perdizes e pombos. No ninho podem ter uma a duas crias, na melhor das hipóteses, cada individuo pode atingir 25 anos. Segundo uma estimativa, em 2011 existiriam 123 casais em Portugal. Mediante o Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal, o estatuto de conservação desta ave é: Em perigo.


Sinto-me sortudo por poder partilhar alguns desres momentos e perante a graciosidade desta magnifica ave de rapina, humildemente me curvo.


















 



























Douro Internacional | Outubro de 2020



Agradecimentos:

Jambas
José Frade
Luis Arinto



domingo, 12 de dezembro de 2021

Pica-paus nos Picos de Europa

 


São esses tempos complicados que nos desafiam: necessitava de uma viagem para renovar horizontes, desanuviar, gritar, arranhar a garganta, ver coisas que nunca vi, ganhar mundo. Urgia sentir a descoberta para me manter atento, agarrado às surpresas do amanhã. Fiz esta viagem de coração nas mãos, rezando para que em casa nada faltasse e que tudo corresse bem durante a minha ausência. Realizei esta viagem também pelo meu saudoso Pai e pelo seu gosto por "passarinhos". Recordando o seu sorriso e as suas palavras "faz uma boa viagem e com cuidado". Fui com amigos e por isso senti-me amparado, muitas vezes em silêncio, outras em alegria efémera, camuflada, contudo fui capaz de brincar, provocar, espernear - habitar o meu parvo eu.

Para mim a fotografia é a história que fica por contar antes e depois da cortina da realidade de abrir e fechar. É o rasto que fica antes e depois daquele instante capatado. É o outro momento que vive para além do disparo do obturador. É a filigrana das conversas, os hiatos silenciosos, as cumplicidades dos gestos e dos olhares. O mapa do engano, o preparativo do consentimento em sucesso. É o falhanço que se glorifica por se ter tentado e que tantas vezes é saboreado com um bom vinho. É a azia de perder neste jogo de penas, a feijões, numa inútil competição. São histórias de amizade e de finca-pé. É a vontade de guardar para sempre, algo que já não volta.

Após isto, vamos então falar destes fantásticos carpinteiros que eliminam insectos prejudicais às árvores, os pica-paus!

Contratámos uma empresa que desenvolve de forma muito bem organizada, saídas vocacionadas para observação e fotografia de vida selvagem. O nosso objectivo era fotografar o pica-pau-preto. Às 6:30 já estávamos no ponto de encontro, um hotel-restaurante de fachada rústica, onde outros madrugadores também esperavam pelos seus guias. Pontualidade e eis que chegava o nosso anfitrião. Entrámos no carro e volvidos alguns minutos, fizemos uma pequena paragem para que o nosso guia fosse buscar as larvas e formigas-carpinteiras.  Chegámos ao local, pouco tempo depois. Aguardava-nos uma clareira ladeada por grandes árvores e no centro, troncos de árvores mortas onde foi inserido as formigas e as suas larvas como forma de chamariz alimentar para os gulosos pica-paus. Tudo devidamente certificado como sendo o alimento local destes bichos e nada que fugisse à dieta alimentar dos pica-paus em concreto.

Pois bem, eram dois abrigos de madeira com uma janela de vidro que passavam despercebidos por entre a paisagem. Cada abrigo acomodava duas pessoas. Erámos quatro intrépidos madrugadores que era necessário dividir pelos abrigos. Assim sendo, o nosso guia fez uma questão, tipo jogo, mas num espanhol muito intricado e embrulhado. Olhou para o meu amigo Gaudêncio e disse qualquer coisa do tipo (desculpem a tradução para portunhol): "

"Hombre... escolhe um número, de um a dois!"

O dia ainda dava os seus primeiros passos, a neblina matinal fazia-se sentir com um véu lento. Os olhos do Gaudêncio abriram-se para tentar melhor entender aquelas palavras enubladas e hesitando, respondeu estoicamente: 

"Três!" 

O espanhol esqueceu-se que era espanhol, ficou pálido, de olhos esbugalhados, boca escancarada a contar os dedos da mão, enquanto olhava para nós, com vontade de pregar valentes reguadas.  Todavia o nosso amigo emendou a aritmética  e após um esgar de espanto e atrapalhação: 

"Dois, pá, dois! 

Rimos de forma contida mas comprometidos com a situação, não esperava pela demora umas valentes gargalhadas. A seu tempo!

Gaudêncio ficou no segundo abrigo e nós no primeiro. Com tudo isto, o nosso amigo Gaudêncio ainda fez amizade e troncou ideias com um alemão que após fotografar o torcicolo deu por encerrada a sessão fotográfica. Gaudêncio ficou sozinho no seu abrigo, mas por certo ia passando o tempo com os pica-paus que por lá se exibiam. enquanto eu e o meu amigo Deodato deliciávamo-nos em risos de escarnio sobre esta estranha aritmética do nosso querido amigo.

O objetivo proposto foi alcançado: Pica-pau-preto (Dryocopus martius)  um dos maiores pica-paus do mundo. Plumagem enigmática, de um negro abismal profundo, apresentando uma coroa vermelha nos machos e apenas a parte superior da coroa avermelhada nas fêmeas. As dimensões do pica-pau-preto podem chegar aos 55 centímetros de comprimento e 84 centímetros de envergadura, pudendo pesar cerca de 400 gramas. O seu olhar é hipnotizante como duas esferas amarelas que não se conseguem parar de fitar.  De voo incaracterístico, em relação ao outros pica-paus, o pica-pau-preto apresenta batidas compassadas e leves, de cabeça erguida, fazendo entoar por vezes o seu grito de alerta áspero e esganiçado.

Estes pica-paus-pretos foram registados em Espanha. Contudo, podem ser encontrados em quase toda a Europa (excepto Portugal, Grã-Bretanha e norte da Escandinávia) distribuindo-se o seu império até à Asia. O seu estatuto de conservação é “pouco preocupante”









Uma dose de formiginhas apetitosas e o olhar quase de desprezo.





A coroa vermelha que resiste à cinza das memórias.





O casalinho a dançar em volta da árvore.




A menina pica-pua-preto na sua busca por formigas.


A curiosidade da fêmea em relação aos seus observadores.











Revelações rubras e monocromáticas 


Com os seus malabarismos e frequentes aparições, o pica-pau-médio (Dendrocoptes medius) foi um dos artistas desta peça fotográfica. A ave aparecia inúmeras vezes nos troncos e por lá permanecia durante algum tempo na busca por seiva e insectos, o que nos permitia alguns momentos curiosos. Ao contrário dos outros primos pica-paus, o tamborilar no tronco das árvores não é o seu forte. Com um aspecto mais "fofinho e arredondado" o pica-pau-médio é menor o que o nosso pica-pau-malhado-grande.  O pica-pau-médio não ocorre em Portugal e o seu estatuto de conservação em Espanha é “pouco preocupante”.







Quem está aí do outro lado do espelho?







O pica-pau verde (Picus sharpei) foi a primeira ave a aparecer para provar a iguarias das formiguinhas. Pulou de árvore em árvore, espetou o bico nos orifícios para sacar as larvas, soltando, de quanto em vez, um riso malandro para depois desaparecer ondulando em voo o seu uropígio de leque amarelo. Em Portugal este é o nosso maior pica-pau, também conhecido por peto-verde ou cavalo-rinchão, estatuto de conservação “pouco preocupante”.


O pica-pau-verde no meio da sua aguarela frondosa.



O momento da prospeção e da fome


O som veio dali mas o carreiro das formigas está aqui.


A atenção dos pormenores. 


Vamos contar formigas!



Paremos um pouco para ouvir o vibrafone do vento a fazer ondular as árvores solitárias.


Nunca tinha visto este bicho tão perto, tão calmo, a paz.


Pica-pau-verde em prespectiva


Atento às movimentações dos seus congéneres.


Na procura da formiga e da larva.


Mais fundo do que a casca da árvore permite. 




e por fim, em monocromático selectivo.



Ao postigo espreita o torcicolo (Jynx torquilla)

O nome deste pica-pau é resultante do facto de rodar o pescoço quando se sente ameaçado. Naquele momento, o torcicolo não foi confrontado com qualquer perigo e como tal não exibiu os seus dotes de contorcionista. Todavia, impelido pela sua curiosidade, descobriu uma entrada no tronco da árvore morta, da qual fez quarto alugado e ao postigo controlava os seus vizinhos do bosque que por ali passavam. O torcicolo gosta de alimentar-se no solo onde procura formigas. Quando sobe aos troncos das árvores permanece imóvel, e fazendo jus à sua plumagem críptica, torna-se quase indetectável. Esta espécie imite um canto choroso durante a primavera e é migrante desse a partir da península ibérica para invernar em África. O seu estado de conservação no mundo é pouco preocupante quanto a Portugal é desconhecido. 


Que linda janela para um imenso bosque.


Bem podia ser um candeeiro, um marco, o sinal mas não... 




Quem vem lá? Ao fundo, a luz de um último reinado!




Para finalizar, comemos bem! Fazendo justiça à excelente e bem abastada mesa de enchidos, presunto, queijos e o bom vinho, que por estas terras degustámos e que sem dúvida recomendamos!







24 de Maio de 2021 - Crémenes, província de León - Espanha.



M22

  Uma lágrima faz estremecer o vinco do lençol imaculado como uma flor ainda sem nome, há dias em que as palavras são audíveis rasgos ...