segunda-feira, 16 de novembro de 2020

O torcicolo da minha janela

 
Entre quatro paredes cá estou em teletrabalho fazendo do meu exíguo quarto, escritório, estúdio, refeitório, dormitório e agora abrigo fotográfico. Antes de iniciar a minha jornada de mais um turno, estava a tomar o pequeno almoço à janela, ao mesmo tempo que admirava a luta do sol a tentar furar as nuvens, enquanto os melros gladiavam-se em estridentes vocalizações matinais assustando as outros bichos. No decorrer dessas explosões esvoaçantes, houve uma movimentação que despertou a minha curiosidade. Descendo da "minha árvore" até umas madeiras surgiu uma pequena ave cuja a camuflagem críptica inicialmente baralhou a minha tentativa de identificação. Contudo, quando pousou não restavam dúvidas. Da família dos pica-paus lá estava ele a admirar o espalhafate dos melros e atento às movimentações do gaio. Nunca tinha visto um torcicolo (Jynx torquilla) em Carcavelos e ainda para mais no conforto do meu quarto, desde a minha janela e de pantufas. Liguei o computador e fui trabalhar com um sorriso, o meu espaço de confinamento transformou-se num observatório de aves.





Depois veio o gaio com uma bolota e com mais olhos do que barriga.




domingo, 15 de novembro de 2020

Com finamento

nesta tarde de confinamento

só as trepadeiras ousam sair de casa 

de costas voltadas à árvore que as desafia,

do outro lado, expiamos o vapor da nossa existência,

atrás de uma janela somos máscaras do nosso medo,

frágeis ornamentos de filigrana neste cerco de contágio.


de pés descalços pela ciência o fosso de afectos aumenta,

beijamos com os olhos e acariciamos o vácuo digital,

a comunicação regenera-se no conforto de um aceno familiar,

as notícias ambicionam ser uma nova religião.


perguntamos quantos morreram hoje?

como quem questiona o que é hoje o almoço;

depois disto... diluímos o medo nos números e até...

creio que o vidro e o metal ficaram mais frios

e o sangue mais escuro.


para me entreter...

desenho o que seria um sorriso ou talvez um balão,

mas fico-me por um circulo que ambiciona ser sol:

os livros fecham-se, os estores caem, as luzes cansam-se.

a televisão mete-se na cama comigo, 

enquanto o computador desfaz-me a máscara humana.


nesta tarde...

o bicho  esconde-se num manto de nevoeiro

e vergonha.

M22

  Uma lágrima faz estremecer o vinco do lençol imaculado como uma flor ainda sem nome, há dias em que as palavras são audíveis rasgos ...