terça-feira, 19 de abril de 2022

Não devia ter perguntado nada

 


Na secretária desarrumada de um consultório,

um iogurte aberto e um pacote de bolachas

espreitavam o nosso nervosismo,

eu de pé a minha mãe sentada, esperávamos.


a jovem médica, morena, franzina, de máscara cirúrgica,

escondia um olhar de simpatia inocente,

descontraída procurava o processo,

depois de reclamar com o computador disse:


"aqui está ele... 

já sei o que lhe vou receitar!"

"como vai ser agora, senhora doutora? perguntei,

suspenso num fio de medo e fragilidade.


a jovem médica arrancou-me a língua pelos olhos e numa só certeza,

"cancro" - há coisas que merecem não serem ditas assim,

quando nos toca de perto, esta palavra é um vórtice de arrasto,

a sagração da incerteza mesmo na oração de afecto maternal.   


talvez devêssemos permanecer na ignorância,

abrir as cortinas do dia com essa mesma fé de nada saber;

"vamos ver, disse ela", a ver vamos, pensei eu; 

a médica piscou-me o olho e desejou continuação de boa Páscoa,


eu e a minha mãe  na comunhão do nosso silêncio

demos passos inseguros em direcção a um novo atalho,

descobrimos novos corredores de luz num hospital qualquer.

depois fomos às compras. não tínhamos iogurtes em casa.






sexta-feira, 15 de abril de 2022

Ode Eunice

 Ouvem-se aplausos mesmo estando os palcos desertos. 

A luz encena a ausência do corpo e a dança da sombra.

Na memória ficará o eterno traço de humildade que desenhavas,

 ao representar mil personas dentro de um só rosto. 

O teu.

E na tua arte inesgotável, será para sempre, dentro e fora deste palco, Eunice Muñoz.

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Um ano depois





O brilho afiado das lâminas retém a fisga de sol matinal,
hoje deixei repousar em vinagre branco as tuas ferramentas,
para que a ferrugem não corroa a memória do bom homem,
fazedor de acasos amigáveis em conversa de café.

Ainda te procuramos ao virar da curva das seis,
nos suspiros pela escada, num pigarrear de catarro antigo.
a chave na fechadura e o fim da tarde feito em passos lentos,
para depois perguntares pela esquadria da simplicidade perpétua:

"Então?"
Ah... nessa interrogação cabia a nossa vida de silêncios e de portas por abrir!
Meu Pai... que faço eu com o formão, serrotes, plainas
e todos os utensílios que arrancam lascas ao tempo e soltaram serradura no vazio?

Não sei como dar forma à arte da carpintaria,
como tu deste vida ao pequeno pinheiro,
que agora cresce em madeira nobre e selvagem,
na tua direcção.




M22

  Uma lágrima faz estremecer o vinco do lençol imaculado como uma flor ainda sem nome, há dias em que as palavras são audíveis rasgos ...