Na secretária desarrumada de um consultório,
um iogurte aberto e um pacote de bolachas
espreitavam o nosso nervosismo,
eu de pé a minha mãe sentada, esperávamos.
a jovem médica, morena, franzina, de máscara cirúrgica,
escondia um olhar de simpatia inocente,
descontraída procurava o processo,
depois de reclamar com o computador disse:
"aqui está ele...
já sei o que lhe vou receitar!"
"como vai ser agora, senhora doutora? perguntei,
suspenso num fio de medo e fragilidade.
a jovem médica arrancou-me a língua pelos olhos e numa só certeza,
"cancro" - há coisas que merecem não serem ditas assim,
quando nos toca de perto, esta palavra é um vórtice de arrasto,
a sagração da incerteza mesmo na oração de afecto maternal.
talvez devêssemos permanecer na ignorância,
abrir as cortinas do dia com essa mesma fé de nada saber;
"vamos ver, disse ela", a ver vamos, pensei eu;
a médica piscou-me o olho e desejou continuação de boa Páscoa,
eu e a minha mãe na comunhão do nosso silêncio
demos passos inseguros em direcção a um novo atalho,
descobrimos novos corredores de luz num hospital qualquer.
depois fomos às compras. não tínhamos iogurtes em casa.