terça-feira, 28 de junho de 2011

A menina da rádio



Quando eram 02:00 sintonizou a frequência de éter sem amparo ou sono
e esperou pelo início do seu programa de rádio favorito
depois deixou-se cair na cama de livros moribundos num suave deleite
ao sabor de uma voz infinita de aguarela colorida
que se desprendia dos frutos quentes da noite em calda doce e sílabas de mel

Por mais que uma vez, ele imagina o sorriso da voz,
nunca estabelecendo um paralelismo direto entre a locutora e o sibilar da fala que a habitava
como se a pessoa do outro lado das ondas hertzianas fosse uma entidade
e a sua voz fosse outra, numa janela de alma diferente
que jamais se juntariam num invólucro único e comum

Para ele, aquela voz era um fio de azeite e o corpo uma filigrana de água
passou a noite desfolhando as improbabilidades das parecenças
escutando o bater acelerado do seu coração
sempre que a locutora anunciava uma outra luz de canção

Por sua vez, no estúdio da rádio,
um corpo de transístor autómato proferia o canto das estrelas
em piloto automático de uma playlist sistematizada
nisto a menina da rádio chegou ao estúdio ensonada
mas ainda a tempo de desligar o computador,
por respeito de todos aqueles que se rendiam aos encantos invisíveis
que pairam no ar, sem rede, ante a vertigem do imprevisível,
a locutora ocupou o seu lugar e...

Abriu a emissão com a sua voz de sempre,
ele apercebeu-se da diferença e o sonho em aguarela de éter continuou.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

O enforcado falhou!



Agora que nos preparávamos para chorar em conjunto, o enforcado falhou!
Convocou toda a gente para o seu derradeiro momento e sem mais nem menos, o enforcado não foi enforcado.

Logo agora!
que estávamos em directo para as televisões, rádios e Internet,
muito atentos para assistir ao enforcamento do enforcado que mesmo antes de ser enforcado já tinha falhado.

Bem me avisaram que ele não era de fiar. Nem um pouco!
Não é à toa que se convoca um padre, dois policias, um taxista (não percebi o motivo da presença do fogareiro) uma prostituta, um autarca, duas irmãs gémeas siamesas, um gestor bancário, uma agente de seguros, um cobrador especializado, dois cães e um caracol. E ele mesmo assim falhou.
Desiludiu toda esta malta acérrima depositária das suas esperanças e tão sedenta por juras de sangue (mas não muito, vá lá só no colarinho)

E ele... o maldito enforcado falhou!
A corrente que dava duas voltas ao pescoço não o estrangulou e pior do que isso não susteve o peso do homem. Há coisas do arco da velha - dizia ela enquanto afastava o fumo de um cigarro alheio, ao mesmo tempo que dois bombeiros e um policia retiravam o corpo completamente depenado que tinha caído ao poço.

Há quem diga que  o enforcado sentiu-se atrapalhado quando viu muita gente junta.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Alto




Em cima do monte mais alto de todos os montes,
um homem mais pequeno de todos os homens
tentava alcançar a curva mais perfeita de todas as circunferências
o epicentro quase nu luar 

desfeito quarto crescente mulher.

Não era preciso tanto

Não era preciso tanto sofrimento, tamanha dor ou insondável medo, para acreditar em Deus, e nos seus caminhos indecifráveis. veredas inscrit...