domingo, 26 de junho de 2022

Pelas garras da águia-real

Em outubro de 2020 visitei Atenor, uma vila do Município de Mirando do Douro, Trás-os-Montes. Fiquei alojado na Casa da Ti Cura onde fui recebido por entre sorrisos hospitaleiros e gestos atenciosos. Ouvi histórias sobre bichos e homens, com uma naturalidade incrível de quem conhece estas terras,  mais parecia que os bichos se roçavam nas nossas pernas e nos mordiam os calcanhares. Pelas ruas da vila, cartazes gigantes dos habitantes locais e da sua honrosa idade, eram exibidos nas casas de granito. Provei a paisagem e os sabores da alma, ao procurar na rudeza da pedra, respostas para o meu coração. A minha desenfreada gulosice apreciou sobejamente o pão quente e as compotas, acompanhadas por bolo de noz. Descansei no silêncio da noite Mirandesa para de manhã cedo dirigirmo-nos para um abrigo, onde com sorte, iria tentar observar o voo da águia-real pelos vales escarpados que ladeiam o rio Douro.

A natureza ditou o seu curso nas garras deste predador. Tive o privilégio de observar a aguia-real em plena acção. A águia desmembrou um coelho, como exímia talhante, numa brutal carnificina de rápida ingestão. Assim se ditam as glórias e as fraquezas de quem foge da fome e de quem corre atrás da fuga. Nenhum outro bicho se aproximou. A águia-real reinava no seu trono, majestosa e sem coroa, pois dispensa tal opulência e os factos falam por si.

A águia-real apresenta uma envergadura que pode atingir 2.5 metros, pesando até 6.5 kg e atingir a velocidade máxima de 190 km/h. Esta rapina tanto pode pode alimentar-se de animais mortos, como fazer uso das garras e do bico afiado para caçar mamíferos, répteis e outras aves. Esta é umas das aves mais mortíferas do planeta.

Momentos reais!


Uma vespa desafia a paciência da águia-real




os vales e o rio - onde o homem é um mero passageiro 


gritos de glória




os passos e as garras




na confissão das árvores ouvem-se histórias trazidas pelo vento


momento de travar




a degustação


por entre os ecos do planalto Mirandês e o serpentear do rio Douro


a pose de quem manda






                                                   o reflexo das nuvens no berço do rio 


os preparativos para levantar voo




voo de despedida


                                                      a geografia local e a sua avifauna


Atenor e nos seus recantos e saudades.


Sempre a pensar nas pessoas que fazem parte da paisagem viva do Planalto Mirandês. 




Passaram-se dois anos e a memória não me deixou em paz. Tinha este artigo por acabar faz tanto tempo, fiz-me a ele e já está!






Agradecimentos:

Família Frade
Luis Arinto
Jambas e esposa
todos os seres visíveis e invisíveis


domingo, 19 de junho de 2022

Ponta de São Lourenço

 



ao afiador de escarpas, só de olhar, cansa o fôlego;

quão rude é o coração da pedra inalcançável?

músculo salgado na rebentação dos meus dias curtos,

nas pernas arenosas e moídas pela aridez do momento,

trago a vista em lágrimas por falhar o teu cerco. 





Já chegámos à Madeira, ou quê? Ponta de São Lourenço

 

No Funchal, o calor pedia sombra e bebida fresca, porém havia ainda algo para descobrir antes do regresso a Lisboa. O meu amigo Bernardo tinha reservado para o último dia a visita à Ponta de São Lourenço e foi uma óptima escolha. A magnífica Ponta de São Lourenço é um monumento natural inserido na Rede Natura 2000, fazendo parte da Rede de Monumentos Naturais da Região Autónoma da Madeira.


Uma paisagem árida e de vegetação arbustiva rasteira, algo completamente diferente do que tinha observado do resto da ilha. Uma península que se estendia como uma cauda escamosa de animal gigante, movendo-se de trezentos em trezentos mil anos com o regresso dos gigantes fosseis à vida.   


Uma vez chegados, deparámo-nos com grupos de jovens turistas, devidamente equipados, que davam início às suas caminhadas. Uma senhora que devia ter mais de 80 anos, acompanhada por uma jovem, estava mais fresca do que eu e com mais fôlego de aventureiro para caminhar por entre escarpas e veredas ingremes.  Caminhemos pois!




Eu não consegui fazer o percurso de 9 km na sua totalidade, nem perto disso, o coração assim não o permitiu. Contudo, gravei na memória o ponto onde fiquei. Talvez, numa próxima oportunidade, volte a este local e se possível caminhe mais uns mil metros.



Depois de calcorrear trilhos, onde as pedras pareciam fugir por debaixo dos pés, o terreno acidentado, com elevações imprevisíveis, descidas que convidavam ao desequilíbrio, confesso, não me esburguei por sorte. O sol a pique acentuava o cansaço, como tal, havia que fazer umas pausas para beber água e sentir a paisagem entrar nas veias. Inspirei o ar atlântico e depois de matar a sede, surgiu um corre-caminhos (Anthus berthelotique reclamava como seu poiso, aquela pedra onde eu estava sentado.




Pelos céus, entre o mar e a península, em busca de uma presa mais distraída, um peneireiro-comum (Falco tinnunculus) fazia voos rasantes junto às escarpas.  Cá em baixo, nós humanos ainda temos tanto que aprender até que a alma ganhe pena.





Agradecimentos:

Bernardo
Semedo
Silva
Tom





quarta-feira, 8 de junho de 2022

Turno da meia-noite







23:49 ligo o computador e entro no túnel,

binário, operário onde estão outros trabalhadores,

as coisas avariadas são o sangue  deste ofício,

tudo é urgente até à morte do primeiro segundo.   


4 horas volvidas, 2 cafés, mãos invisíveis seguram a cabeça,

a casa de banho é uma cabine telefónica em plena avenida,

atendo o telefone como se vendesses farturas, tento resolver,

os circuitos do homem e o homem e os seus circuitos.


desligo o controlador de rede às 08:04,

de olhos vermelhos e boca seca, arrasto os dedos,

tudo parece longe, até a memória de uma cama,

desfeita de lã de vidro e aço a pairar numa outra lua.


ignição corporal, mastigo pão. procuro calar o sol,

ingiro drogas coloridas em embalo de alcofa,

imolado num cartuxo de sono químico,

do qual só espero um tiro na têmpora - rápido!


15:45 acordo com o corpo esmagado pela gravidade,

é dia, os bichos medram  mais do que a fome,

um prato branco reclama uma refeição ainda sem nome,

na televisão homenzinhos brincam entre enganos e guerras.


enceno actos atabalhoado, existências alternadas, ereções amansadas, 

contactos de raspão, sem tempo para amar, quanto mais para saudar,

in vitro,  os outros vivem contra o muro desta ausência,

enquanto eu corro dentro de uma roda imparável, qual ratinho sem destino,


23:51 ligo o cérebro ao computador e sei  que o meu nome não é "password".

quando este turno acabar prometo escrever a palavra passe no areal do teu corpo.


Já chegámos à Madeira, ou quê? Levada dos Balcões

 


Esta será a levada que oferece um menor grau de dificuldade aos caminhantes. No total,  ida e volta, são 3 km, nos quais se respira ar puro a uma altitude de 880 metros. O terreno é sempre plano. Durante 45 minutos somos transportados para um túnel do tempo que nos remete para uma época de descobrimentos, não fosse o curso de água feito pelo homem, tudo o resto é selvagem e intocável. Passamos por entre grandes pedregulhos tombados, onde a humidade faz crescer musgos e líquenes. Da vegetação densa observei plátanos e carvalhos, para além das muitas espécies indígenas como o til, o loureiro, a urze e a uveira-da-serra. Esta é a riqueza da Floresta Laurissilva com 15000 hectares, ocupa 20% da ilha da Madeira, sendo a área mais bem preservada deste tipo de floresta no mundo. Por isso mesmo, faz parte da Rede Natura 2000, classificada como Património Natural da Humanidade pela UNESCO desde 1999.



Agora as briófitas e a grande diversão que causaram no meu grupo de amigos.

Tanta nos restaurantes, como nas nossas idas às ponchas, as briófitas vinham à conversa, no meio de risos e alterações fonéticas ao nome e no meio de gargalhadas passavam de briófitas passaram a ser denominadas de "briólias", "biónicas", "biofitas", bicónicas" tudo servia para fazer do nome das plantas, riso e cumplicidade.

Os briófitos são o grupo muito antigo das plantas terrestres. Não têm tecidos vasculares e como tal, não produzem sementes, dependendo a sua reprodução da água que é absorvida e transportada entre células, o que faz que o seu crescimento seja lento e limitado. 

As briófitas mais comuns são as hepáticas e os musgos. Nesta imagem temos uma hepática que se assemelha a uma mão e outras a um fígado.


 


No meio da floresta fechada ouvi um bater de asa seguido de fuga. A ave pousou num ramo quase no topo de uma árvore, o que dificultava a observação pela densa folhagem e o angulo complicado. Cá de baixo, aproximei-me, o bicho, porém, permaneceu imóvel a ternar passar despercebido, parecendo estar a controlar as minhas movimentações. Minutos volvidos, iniciou a limpeza das penas sem se preocupar muito com os meus disparos fotográficos. Era hora de cuidados de beleza. O animal estava quase sempre de costas ou virado para o outro lado, enquanto eu tentava mudar de abordagem ou de posição. Contudo, a floresta fechada e a estreita vereda não apresentavam muitas alternativas criativas. Depois de muitas voltas, duas fotos possíveis que servem de registo de um momento de pura sorte e muita paciência estilística do pombo-da-madeira.



O pombo-da-madeira (Columba trocaz) é uma espécie endémica da ilha da Madeira, sendo o seu habitat predominante a floresta de Laurissilva


.
No Mirador dos Balcões fomos brindados pelo inevitavelmente belo tentilhão-da-madeira e as suas poses de curiosa interrogação.





Aqui estou no Mirador dos Balcões a pousar para a minha ego pequenez.  Daqui surge a admiração pelo vasto vale e a dimensão dos passos que ficaram por conhecer. Esta paisagem viva é um quadro tão belo, por isso mesmo mutável e quase sempre incompleto. Faz-nos aprender o valor da humildade, não tivéssemos nós nascido com mais olhos do que asas.

Sérgio Guerreiro e a Vereda dos Balcões


No caminho de regresso encontrei o Tom que enroscava-se para fazer frente o frio da noite que se aproximava.





Agradecimentos:

Bernardo
Semedo
Silva
Tom





M22

  Uma lágrima faz estremecer o vinco do lençol imaculado como uma flor ainda sem nome, há dias em que as palavras são audíveis rasgos ...