terça-feira, 22 de março de 2011

Os Passageiros #I






Primeira paragem:

uma jovem-tão-jovem com uma mala de senhora-tão-senhora fez sinal para que o eléctrico parasse. 
de roupa justa às curvas que o corpo consentia e de olhos manchados de pressa,
ela entrou no eléctrico trazendo a chuva agarrada ao peito.
comprou um bilhete e no meio da carruagem
sacudiu o cabelo em câmara lenta,
em seguida puxou o curto vestido para baixo.

sem que nada o fizesse prever,
a mala abriu-se e do seu interior caíram doces demónios amestrados;
um telemóvel que se desfez em nada melhor, 
rebuçados de mentol,
uma maça com uma dentada no rebordo,
uma peça de lingerie estupidamente pequena
vários preservativos multicolores,
e uma arma imaculadamente prateada,
um pequeno revolver (que não era de brincar) precipitou-se e rolou duas vezes no soalho do eléctrico.
com a rapidez de uma jovem-tão-jovem mas nada incomodada,
ela recolheu a arma e embrulhou-a na peça de lingerie,
depois apanhou a bateria e o visor partido do  telemóvel, 
e ainda, um ou outro preservativo e mais uns quantos rebuçados que conseguiu resgatar por entre os pés dos passageiros,
só abandonou a maça porque o fruto cirandava como um rato desnorteado na cabine do maquinista.

confiante, ergueu-se e guardou todos os seus haveres, fechou a mala de senhora-tão-senhora com tanta convicção que mais parecia uma actriz de cinema em pose fotográfica.
sorriu e os passageiros boquiabertos não conseguiram engolir o espanto.

como se nada fosse com ela,
sentou-se de perna escandalosamente cruzada entre a riqueza da filigrana nua e a sensualidade do requinte paralelo à pele.
para se abstrair dos olhares dos restantes passageiros,
pegou num jornal e não sabendo nada de economia, percorreu uma coluna cheia de números e curvas evolutivas da mais alta finança.
após cinco minutos abandonou a leitura.
encostou a cabeça à janela e sentiu o bafo da sua respiração num desenho assustadoramente cardíaco.

percorridas duas colinas de uma cidade voadora, 
os passageiros entravam e saiam fantasmas de si próprios enquanto olhavam para a jovem-tão-jovem. 
ela continuava imóvel, como se fizesse parte de uma aguarela desmaiada em amarelo torrado.
o eléctrico avançava e ela de olhos abertos,
onde cabiam todos os livros que ainda não foram escritos, imaginava como seria fazer uma pausa na sua vida, tão simples como carregar num botão e parar.

assim ficou...
até que a engrenagem mecânica do corpo fizeram os freios da alma afrouxar,
a jovem-tão-jovem saiu na paragem do Castelo e ficou a dizer adeus ao eléctrico 28.

tão grata pela invenção da máquina do tempo.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Café Poema 18-03-2011 - em (des)acordo ortográfico



meus caros Amigos,

dia 18 de Março pelas 22:00 no Cappucinos coffee Shop em Carcavelos,

vamos trocar ideias, opiniões ou outro tipo de órbitas, sobre a aplicação do novo acordo ortográfico na língua Portuguesa, e que implicações se farão sentir no corpo geográfico da poesia.

teremos ainda espaço para ouvir, na nossa rubrica os Poetas da Casa, as declamações mais fervorosas dos poemas que colhemos das árvores e das raízes dos mundos.

até lá!

saúde e abraços.

sexta-feira, 4 de março de 2011

O ladrão das boas notícias



Optei por rapar o cabelo depois de ter tatuado no pescoço uma viúva negra
hoje tal como ontem e anteontem não tive visitas
(já não sei o que isso é)
não me queixo sempre tive medo das surpresas que desejava irreais
(é certo que ninguém vai aparecer)
também não recebi nenhuma correspondência
(não é Natal por isso a minha irmã não me vai escrever)
ainda bem...
detesto responder a cartas que não adiantam nada ao que está feito.

Quarenta e cinco quilos e olheiras matinais,
estou mais magricela mas em forma.
quem não emagrece dentro destas paredes ou dentro deste uniforme azul?
não reclamo.
gosto de me ver sem cabelo. a minha companheira de cela também gosta.
ela faz-me certos favores e eu retribuo com certos mimos,
não é assim que é la fora?
Há muitas mulheres da minha idade que davam tudo para ter o meu peso.
elas que venham passar à prisão uns tempinhos e vão ver como ficam no ponto;
sem estrias ou celulite, tudo no sítio, não prometo uma cinturinha de vespa,
mas garanto que ficam jeitosas.

Estou preparada para levar um dia igual a todos os outros.
como é normal tomei banho, fiz ginástica e avancei nos trabalhos manuais,
(dizem que o trabalho com as mãos faz bem à depressão)
o tapete de Arraiolos ( devia dizer tapeçaria de Caxias)
está quase pronto mais um ano e acabo.
tenho tempo, muito tempo, não me posso queixar.
na verdade sinto-me melhor, cada vez melhor.
já lá vai o tempo de revolta e raiva.
tenho consciência que não devo vazar um olho às guardas prisionais,
não vai adiantar nada e quem perde sou eu. sempre foi assim.


De ti
lembro-me (não sei porque razão) daqueles tempos
em que te ajudava a arrombar o marco dos correios
para lermos a correspondência dos nossos vizinhos
tinha dezoito anos e tu vinte e um para aí...
recordo-me daqueles contentores vermelhos que ficavam no fim da nossa rua,
que nós desventrávamos assim num piscar de olhos.
depois fugíamos com as cartas roubadas
e em cima de uma rocha, na praia de Caxias, fazíamos amor
por debaixo das estrelas com o ralhar do mar aos nossos pés,
e passávamos as horas mais longas que as horas sem tempo
a ler,
as cartas dos outros, as dores dos outros e as proximidades que nos afastam
não sei...
porque insistes que eu te receba nesta cela que desenhaste
num dia de destino tardio
para nós.
sei que hoje não vens atormentar-me com a tua sombra branca
de terapeuta da fala.

Não era preciso tanto

Não era preciso tanto sofrimento, tamanha dor ou insondável medo, para acreditar em Deus, e nos seus caminhos indecifráveis. veredas inscrit...