sexta-feira, 20 de maio de 2022

Baixa-chiado 7:53

 


A escadaria do metropolitano é uma linha de montagem

na desconstrução do sonho paralelo destes corpos em fuga, 

somatório de vultos pelos caminhos entrecruzados,

onde aceleramos o passo e matamos o dia anterior.


a marcha é coordenada pelo ritmo ordeiro e fabril

de um relógio de ponto cardio-atómico,

os sapatos conduzem um véu fantasmagórico,

de quem começa a esgravatar o túnel com os olhos.


os pensamentos em falso, um a um, são esmagados,

atrasamos e antecipamos dores e anseios.

na voragem diária que desejamos descalçar.


o ninho só cai uma vez, depois reconstruímos os braços.



domingo, 1 de maio de 2022

Mãe e filho, lado a lado

Na primeira sessão do tratamento oncológico

provámos a sopa do hospital e o arroz doce,

para afugentar a lâmina fria do medo

e o travo amargo que se colava às palavras.

 

bebemos água, cerimoniosos, benzendo segredos,

amparamos as horas frágeis, mãe e filho, lado a lado,

na esperança e no desespero desta luta de silêncios e fé!

sim… a boa disposição das enfermeiras era um placebo contagiante!

 

um copo de água com açúcar... para festejar a vida por favor!

ao sair do hospital, a dimensão da primavera eclodia em cores mágicas.

acredito que algures no recesso de um qualquer universo,

haja uma luz que nos guia, dando sentido a este caminho de pétalas caídas.


terça-feira, 19 de abril de 2022

Não devia ter perguntado nada

 


Na secretária desarrumada de um consultório,

um iogurte aberto e um pacote de bolachas

espreitavam o nosso nervosismo,

eu de pé a minha mãe sentada, esperávamos.


a jovem médica, morena, franzina, de máscara cirúrgica,

escondia um olhar de simpatia inocente,

descontraída procurava o processo,

depois de reclamar com o computador disse:


"aqui está ele... 

já sei o que lhe vou receitar!"

"como vai ser agora, senhora doutora? perguntei,

suspenso num fio de medo e fragilidade.


a jovem médica arrancou-me a língua pelos olhos e numa só certeza,

"cancro" - há coisas que merecem não serem ditas assim,

quando nos toca de perto, esta palavra é um vórtice de arrasto,

a sagração da incerteza mesmo na oração de afecto maternal.   


talvez devêssemos permanecer na ignorância,

abrir as cortinas do dia com essa mesma fé de nada saber;

"vamos ver, disse ela", a ver vamos, pensei eu; 

a médica piscou-me o olho e desejou continuação de boa Páscoa,


eu e a minha mãe  na comunhão do nosso silêncio

demos passos inseguros em direcção a um novo atalho,

descobrimos novos corredores de luz num hospital qualquer.

depois fomos às compras. não tínhamos iogurtes em casa.






sexta-feira, 15 de abril de 2022

Ode Eunice

 Ouvem-se aplausos mesmo estando os palcos desertos. 

A luz encena a ausência do corpo e a dança da sombra.

Na memória ficará o eterno traço de humildade que desenhavas,

 ao representar mil personas dentro de um só rosto. 

O teu.

E na tua arte inesgotável, será para sempre, dentro e fora deste palco, Eunice Muñoz.

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Um ano depois





O brilho afiado das lâminas retém a fisga de sol matinal,
hoje deixei repousar em vinagre branco as tuas ferramentas,
para que a ferrugem não corroa a memória do bom homem,
fazedor de acasos amigáveis em conversa de café.

Ainda te procuramos ao virar da curva das seis,
nos suspiros pela escada, num pigarrear de catarro antigo.
a chave na fechadura e o fim da tarde feito em passos lentos,
para depois perguntares pela esquadria da simplicidade perpétua:

"Então?"
Ah... nessa interrogação cabia a nossa vida de silêncios e de portas por abrir!
Meu Pai... que faço eu com o formão, serrotes, plainas
e todos os utensílios que arrancam lascas ao tempo e soltaram serradura no vazio?

Não sei como dar forma à arte da carpintaria,
como tu deste vida ao pequeno pinheiro,
que agora cresce em madeira nobre e selvagem,
na tua direcção.




sexta-feira, 25 de março de 2022

O novo centro comercial

 


O que era terreno baldio onde as perdizes

anunciavam, com voos curtos, o nascer do dia

deu lugar a um centro comercial,

a uma rotunda, a uma bomba de gasolina,

lojas a perder de vista e um parque de estacionamento

para carros elétricos e não só, todo e qualquer veiculo aéreo ou terrestre,

tal não era a fome celerada por construção desmedida e lucro.


Bem perto da recém inaugurada manjedoura comercial, 

junto à pista vermelha para ciclistas, 

e outros andarilhos solitários, 

um pequeno coelho assustado

não sabia para onde se fugir,

após ter perdido a sua lura, em desespero,

correu para junto de uma trincheira de ervas, 

e de costas voltadas para a novo empreendimento suspirou:

"na última primavera nada disto existia".



" E assim foi a traição da última primavera" pensei eu,

perdido no meio desta voracidade cinzenta,

com que se destroem anos de selvagem doçura.


sexta-feira, 4 de março de 2022

O gato e a guerra







No silêncio do olhar do gato cabem todos os pensamentos do homem. O gato dá nome às terras por descobrir, sobe às árvores eternas, entra nas casas por desenhar e descobre o amor na traição das noites sem luar. Já o homem, invade territórios, subjuga irmãos, idealiza impérios de fumo, tudo pela gula autofágica de quem sonha ter mais do que sete vidas e um terço de arrogância. 

Encontrei este felino nas sombras estridentes da rua. Eu estava quase perdido, ele, de pose triunfal, achou-me, para depois fazer-se dia. Sem que nenhum de nós ocupasse mais de um minuto da vergonha deste mundo, desaparecemos nos bombardeamentos que sangram lá longe.  




Amanhã

  no ciclo das luas  deixei passar os dias, ainda há pouco ouvi-te dizer que não conseguias dormir, as dores laminares puxavam-te as pernas,...