terça-feira, 19 de abril de 2022

Não devia ter perguntado nada

 


Na secretária desarrumada de um consultório,

um iogurte aberto e um pacote de bolachas

espreitavam o nosso nervosismo,

eu de pé a minha mãe sentada, esperávamos.


a jovem médica, morena, franzina, de máscara cirúrgica,

escondia um olhar de simpatia inocente,

descontraída procurava o processo,

depois de reclamar com o computador disse:


"aqui está ele... 

já sei o que lhe vou receitar!"

"como vai ser agora, senhora doutora? perguntei,

suspenso num fio de medo e fragilidade.


a jovem médica arrancou-me a língua pelos olhos e numa só certeza,

"cancro" - há coisas que merecem não serem ditas assim,

quando nos toca de perto, esta palavra é um vórtice de arrasto,

a sagração da incerteza mesmo na oração de afecto maternal.   


talvez devêssemos permanecer na ignorância,

abrir as cortinas do dia com essa mesma fé de nada saber;

"vamos ver, disse ela", a ver vamos, pensei eu; 

a médica piscou-me o olho e desejou continuação de boa Páscoa,


eu e a minha mãe  na comunhão do nosso silêncio

demos passos inseguros em direcção a um novo atalho,

descobrimos novos corredores de luz num hospital qualquer.

depois fomos às compras. não tínhamos iogurtes em casa.






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