domingo, 9 de agosto de 2020

Bufo-real - um encontro inesperado



Nasci assim, míope num grau um tanto ao quanto acentuado e com o passar dos anos tenho reunido outras maleitas que me vão deixando mais conformado e ao mesmo tempo mais conhecedor dos meus limites. De certa forma, é bom saber até onde pudemos ir, e surpreendermo-nos amiúde ao ultrapassarmos algumas barreiras. Como tal, reconheço que não sou um grande observador de aves, muitas vezes não consigo ver aquilo que está a um palmo à frente do meu nariz. Confesso que não penso muito no assunto,  e até gozo com a situação entre amigos, ao ponto de lhes dizer: "se eu não estiver a ver o animal, tirem-me a máquina da mão e fotografem que eu depois cá me amanho e tento descobrir onde está o bicho".  

Para mim estas saídas fotográficas funcionam como terapia social. Alinho nestas aventuras mais pela camaradagem do que pela competição,  obviamente sou apreciador de uma boa fotografia (seja lá o que isso for), contudo, ciente que sou vesgo e mais lento que a minha sombra cansada.

Felizmente, não somos todos iguais. Tenho camaradas de olhar aguçado e treinado que conseguem detectar a mais ténue movimentação  numa árvore. Outros, de velocidade tamanha, dão  passadas mais rápidas do que o meu folgo me permite imaginar. Às vezes até fico a modos que exaurido de os ver a subir ladeiras com a maior ligeireza, enquanto o meu coração me aconselha prudência e caldos de galinha.  

Os meus amigos sabem que estes meus defeitos de fabrico me tornam mais parcimonioso na capitulo da destreza. Por vezes, neste "jogo de esconde-esconde." sou o último a ver e o último a chegar. E com isso estou plenamente consciente do quão amador sou no reino da fotografia de natureza. Todavia, não busco a melhor fotografia do mundo, antes a história do falhanço de uma mera fotografia. Acredito que a luz nos conduza a vários caminhos, o que nos permite várias interpretações ou múltiplas histórias. 

Estou conformado que não vou fazer deste passatempo o meu ganha pão. Pois sei que não é daqui que advém o meu sustento. Todavia, em certos dias, é aqui que vou buscar forças para ir trabalhar laboriosamente a seara computacional. Aqui estou pronto a falhar - Cardiovascular - Miope, a vida é feita de fraquezas, compete-nos a nós lidar com elas, dando a volta ao texto da melhor maneira possível. Daí vem o gosto pela fotografia e a sua capacidade para nos surpreender com o silêncio dos seus intervalos.

 
Ao terceiro mês da pandemia em que pensavas tu naquela tarde?  

"- O impiedoso cerco do covid-19, máscaras, álcool-gel, zaragatoas. Ah sabe tão bem o contacto com a natureza. "

Foi uma autêntica surpresa o que aconteceu naquela tarde na Serra de Sintra. Tínhamos reunido um grupo de amigos para tentar fotografar o rouxinol-do-japão.  Chegámos ao local e calcorreamos veredas de mato fechado em busca do pequeno rouxinol mas apenas o ouvimos (ou pensámos que o ouvimos) no meio de tantas toutinegras e outos piares.  O local estava pejado de libelinhas calopterix-cobre (Calopteryx haemorrhoidalis) que ocupavam as erupções soalheiras das silvas. O calor era muito e a sombra bem vinda o que me deixava sequioso por descanso. Fizemos mais de seis quilómetros entre risos e teimosias em busca de uma pequenina ave. Não a vimos. Antes de darmos por concluída a nossa busca observámos um açor (Accipiter gentilis) a voar sob nós sem piedade pelo nosso irremediável espanto. O açor passou por entre árvores, tirei três fotografias e mais não consegui.

Seguimos em frente, para admirar as manobras de distração de um bútio-comum (Buteo buteo) com intuito de afugentar do seu território potencias predadores. Procurei o significado da sombra perto de umas árvores de ramos tortos e fantasmagóricos. Achei piada a curvatura do tronco quase fêmea.  Porém, havia algo que não estava dentro do espectável. Um relevo estranho desafiava qualquer protuberância ou o seguimento natural do  tronco. Não podia ser... ainda para mais mexia-se! Aquela massa críptica acastanhada perscrutava os meus movimentos em suaves rotações. Não acredito... com dois pontos brilhantes assemelhando-se uma lanterna viva que quase obrigava a árvore a curvar-se. Não era o tronco que se movia mas sim uma majestoso criatura. Intrigado com aquele composto árvore-bicho aproximei-me e foi nesse instante que constatei o que me era dado a observar em homenagem a todos os míopes turbulentos .

A uns escassos 5 metros, um bufo-real (Bubo bubo) perscrutava as minhas intenções.  Fiquei sem fôlego.  Tirei duas fotografias com medo de o afugentar e gesticulei para chamar os meus companheiros. Inicialmente ninguém  percebeu. "O que estará ele para ali a acenar?" Eu esbracejava, tentava comunicar sem grandes espalhafate e quando abria a boca... As palavras eram articuladas num  estranho código onde comia vogais e esticava consoantes O primeiro amigo a chegar não conseguiu ver o animal, enquanto eu repetia: "ali, ali, na terceira árvore à tua frente". Não sou a melhor pessoa para das indicações e tirei-lhe a máquina da mão disparando suavemente. O bicho não se incomodou com as nossas hesitantes figuras. Chegou mais uma amigo que conseguiu descortinar o animal bem camuflado no tronco da árvore. E foi esse companheiro que direcionou o olhar do primeiro para que todos víssemos a sua majestade bufo-real, uma das maiores aves de rapinas nocturnas da europa. O bicho deixou-se fotografar até filmar, para depois se cansar com a nossa inépcia para revelações cinematográficas e debandou sem se ouvir uma folha cair. 

Olhámos uns para os outros e não nos abraçamos por que a pandemia não deixou. Parecíamos putos que tínhamos ganho um berlinde abafador e que agora o mundo do faz-de-conta passaria a ser nosso. Para comemorar a nossa tremenda sorte esquecemos o rouxinol-do-japão e fomos beber uma cerveja, celebrando assim este momento inesquecível em estranhos tempos de viros e confinamento também ele cerebral.

O misterioso bufo-real na encantada Serra de Sintra.









Sem comentários:

Enviar um comentário

A batalha do cuco

Ar e vento já é meio sustento" Para desanuviar a cabeça destes tempos complicados, aceitei o convite do meu amigo José Frade para ir fo...