domingo, 31 de dezembro de 2017

Livro do Desassossego I - Fernando Pessoa / Vicente Guedes




Em desassossego estou a ler e vou continuar por muito tempo. Este é um dos livros de todos os livros. Aqui escorrem imagens decantadas da flor mestra de Fernando Pessoa. Ao ler a primeira parte deste livro sentimo-nos quase sempre incompletos e em desacordo com a metade que nos sobra ou falta. Andámos às escuras à procura de uma luz que nos guie ou de um rumo que nos ampare. Invariavelmente parámos naquela frase, naquela passagem, e ficamos por lá demoradamente decantando a paisagem suspensa que nos embala a ideia. Em cada esquina há um sobressalto de uma metáfora que nos enternece em acto contínuo. A cada folha volvida o tempo escorre de forma diferente. Somos nós os minutos de um relógio que nos incompleta e por isso nos instiga a continuar.
Este desassossego, muito mais do que lido, merece ser sentido. A cada página ouvimos os arranhões das cordas vocais no desencontro das palavras e no feitio agreste do nosso desconforto. Sim, às vezes não estamos cómodos com estas abordagens, com estas conjugações; outras vezes somos embalados pela beleza das coisas improváveis. Aquilo que nos faz falta questionar o motivo musical das palavras. Por aqui viajamos no carrossel imaginário das nossas imperfeições. Muito mais que nomes de heterónimos, são vozes multifacetadas que ecoam num dialogo de razões, frente a frente, na mesma mesa intemporal. Eis algumas frases em que me detive por alguns minutos incompletos.

Já passaste, e já foste e já te amei - sentir-te presente é sentir-te isto.
pág. 29
Um vento de sorriso sopra cinzas de propósitos mortos sobre o que eu sou de desperto.
pág. 41
nada vale a pena, ó meu amor longínquo, senão o saber como é suave saber que nada vale a pena...
pág. 43
vivíamos horas impossíveis, cheias de sermos nós... E isto porque sabíamos, com toda a carne da nossa carne, que não éramos uma realidade. Éramos impessoais, ocos de nós, outra coisa qualquer...
pág. 45
Só temos a certeza de escrever mal quando escrevemos; a única obra grande e perfeita é aquela que nunca se sonhe realizar.
pág. 49
Perder pai e mãe, não atingir a glória nem a felicidade, não ter um amigo nem um amor - tudo isto se pode suportar; o que se não pode suportar é sonhar uma coisa bela que não seja possível conseguir em palavras.
pág. 50
O único modo de estar de acordo com a vida é estarmos em descardo com nós próprios. O absurdo é divino.
pág. 55
Nada se penetra nem átomos nem almas. Por isso nada possui nada. desde a verdade até um lenço - tudo é impossível. ( A propriedade não é um roubo: não é nada)
pág. 60
O que as nossas sensações têm de real é precisamente o que têm de não nossas.
pág. 69
Ler é sonhar pela mão de outrem.
pág. 78
As longas horas que tenho passado à beira do meu correr têm-me cansado rios sobre a existência.
pág. 80
A vida é a hesitação entre uma exclamação e um interrogação; na dúvida há um ponto final.
pág. 84
O único homem feliz é o que não toma nada a sério.
pág. 94
Buscar o confronto no desprezo ainda é um dos papéis da crítica.
pág. 94
Não fales... Aconteces demasiado... Tenho pena de te estar vendo... Quando serás tu apenas uma saudade minha? Até lá quantas tu não serás?
pág. 95
Tropeço nos sentimentos reais dos outros, o antagonismo dos seus psiquismos com o meu, entala-me e entaramela-me os passos, escorrego e destrambelho-me...
pág. 99
Então me pára a vida, e a arte se me roja aos pés.
pág. 104
... visto que a única verdade para mim sou eu próprio. Isolar-me tanto quanto possível dos outros é respeitar a verdade.
pág. 106
Talvez se descubra que aquilo a que chamamos Deus e que tão patentemente está em outro plano que não a lógica e a realidade espacial e temporal, é um nosso modo de existência, uma sensação de nós em outra dimensão do ser.
pág. 110
Todos temos por onde ser desprezíveis. Cada um de nós traz consigo um crime feito ou o crime que a alma Ihe pede para fazer.

Passos de parágrafos meus há que me arrefecem de pavor, tão nitidamente gente que eu os sinto
pág 111

Há metáforas que são mais reais do que a gente que anda na rua
pág 111

Há imagens nos recantos de livros que vivem mais nitidamente que muito homem e muita mulher.
pág 111


Na resta dos meus outonos senão o inverno das minhas esperanças.
pág 133

A minha vida é como se batessem com ela.
pág 137

Ao sentir isto, sinto dele saudades, como se ao senti-lo não sentisse.
pág. 138

A saudade de amar como uma viagem por fazer às terras incompletas
pág 158

Amigos, nenhum. Só uns conhecidos que julgam que simpatizam comigo e teriam talvez pena se um comboio me passasse por cima e o enterro fosse em dia de chuva.
pág 159

É preciso certa coragem intelectual para um individuo reconhecer destemidamente que não passa de um farrapo humano...
pág 160

A bondade é a delicadeza das almas grosseiras.
pág 165

A minha vida é uma febre perpétua.
pág 165

É preciso certa coragem intelectual para um individuo reconhecer destemidamente que não passa de um farrapo humano...
pág 160

Publicar-se - socialização de si próprio. (Que ignóbil necessidade! Mas ainda assim que afastada de um acto - o editor ganha, o tipógrafo produz.)
pág 180

- Amar é cansar-se de estar só; é uma cobardia, e uma traição a nós próprios.
pág 181


Tenho construído em passeio frases perfeitas de que depois me não
lembro em casa. A poesia inefável dessas frases não sei se será parte
do que foram, se parte do que afinal não foram.
pág. 198


Do estudo da metafísica, das ciências, passei a ocupações de
espírito mais violentas para o equilibrio dos meus nervos. Gastei apa-
voradas noites debruçado sobre volumes de místicos e de cabalistas,
que nunca tinha paciência para ler de todo, de outra maneira que não
intermitentemente trémulo e □ Os ritos e as razoes dos Rosa-Cruz, a
simbólica ll da Cabala e dos Templários □--sofri durante tempos a
aproximação de tudo isso. E encheram a febre dos meus dias especu-
lacoes venenosas, da razao demoníaca da metafisica-a magia, a
alquimia - extraindo um falso estímulo vital de sensação dolorosa e
presciente de estar como que sempre à beira de saber o1 mistério su-
premo. Perdi-me pelos sistemas secundários, excitados, da metafísica,
istemas cheios de analogias perturbantes, de alçapões para a lucidez,
pondo paisagens misteriosas onde reflexos de sobrenatural acordam
mistérios nos contornos.
pág. 197

Isto está tudo tão decadente que já nem decadentes há.
pág 218

Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade.
pág. 219



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