Quantas vezes levei comigo a “Fome” de Knut Hamsun para os hospitais, transportes públicos, jardins, praias e bocas de mar, sem desfolhar uma ideia ou passar o dedo pelas rugas destas páginas?
Sim! Esta obra acompanhou-me durante muitas horas deste ano. Até agora, o ano mais complicado da minha vida.
Passeei o
livro como se passeia, lado a lado, com um amigo de poucas palavras, mas fortes
convicções. Os dois desabafámos sobre as nossas capas e o peso do amanhã. Eu e
o livro fechámos olhares para não cair na tontura esfomeada deste mundo. Quando
chegava o momento de abrir o miolo do texto e sorver sensações, temia que a
nossa viagem terminasse. Adiava o precipício do fim. Mesmo não sabendo, ao
certo, quantas páginas temos de desflorar sem que os olhos reclamem a derrota da
mansidão. Com calma, folheava páginas terna e lentamente. A vida não pode esperar, contudo eu perferia a lassidão de me perder nas palavras do autor e deixar-me a marinar por aí.
A “Fome” declara-se tão cruel como comer madeira ou mastigar a nossa própria carne ainda quente. A voz deste livro segredou-me aventuras solitárias de quem escreve para sobreviver, mas não vive para escrever, resiste estoicamente para não secumbir aos dissabores do quotidiano. Afinal, fazer o que mais se ama, sem prestar contas a ninguém, tem o seu preço. Depois de tantos garfos enfiados goela abaixo, redescobri nesta "fome" a carcaça dura e bolorenta que nem os ratos lambem. Aquela insatisfação constante que nos amassa o estômago e logo após os espasmos iniciais, somos impelidos a continuar, dia a dia, em frente, sem saber como, arrastando os pés ensanguentados.
De prato tantas vezes cheio de pequenos nadas que nem à miséria se lembra.
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