O húmus remexido pelos melros
ilumina o rasto das centopeias maria-café
pelos escombros da terra húmida,
aproveito para plantar dedos em sangue
espero que daqui a cem palmos de noite
nasça um abraço.
O húmus remexido pelos melros
ilumina o rasto das centopeias maria-café
pelos escombros da terra húmida,
aproveito para plantar dedos em sangue
espero que daqui a cem palmos de noite
nasça um abraço.
Dificilmente ligarás do outro lado da morte
mas mantenho o aparelho ligado e com carga
suficiente para te ouvir dizer:
"bom dia, vou fazer sopas de café com leite."
quando o teu telemóvel extremece
espero que me digas - "vê-lá quem é!"
entretanto, acumulam-se alertas e mensagens,
promoções fantásticas e viagens.
deste lado respiro o teu número vivo
prolongamento deste fio de espera
até que nada mais seja necessário
sem corpo nem tempo seremos tudo.
10 meses depois da tua partida, minha querida Mãe!
Balões de ar quente puxam-te pelo
cabelo
aves necrófagas elevam-te e esticam-te os
braços
um dirigível fantasma rasga-te
o canto da boca
flutuas na atmosfera o
tempo necessário para cair
sejas tu sorriso ou canto de
lágrima.
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Nemoptera coa |
Os biólogos afirmam que o tubarão-da-gronelândia pode viver mais de 400 anos.
Este vertebrado atinge a maturidade sexual com 150 anos.
Por outro lado, a efémera, para além de ser um lindo insecto, vive apenas umas horas.
Estava a pensar nisto, sendo eu um trabalhador por contra de outrem,
enquanto calculava a idade da reforma das abelhas obreiras.
Desisto. Desisto do tempo mas sei que Ele não desiste de mim.
Fazias hoje 78 anos minha Mãe,
no teu aniversário oferecia-te uma rosa
Uma vasta coleção de presépios, provenientes dos mais diversos cantos do
mundo e concebidos com os mais variados materiais alegravam os seus olhos.
Todos os anos elegia um conjunto de figurinhas para as festividades. No ano
passado, o presépio eleito foi esculpido em osso, muito bem elaborado, até
parecia que as estatuetas sorriam com as sombras. Todos os anos fazia pequenos
embrulhos para oferecer a quem já não os podia receber. Junto ao presépio ele
abria os presentes dirigidos aos mortos e rezava. Era uma forma de dar vida aos
vários nomes com que batizava a solidão.
Nos primeiros dias de dezembro, de manhã cedo, dirigia-se a uma quinta
abandonada onde enchia de musgo uma saca de serrapilheira. Ele sabia da
importância do musgo para reter a água e prevenir a erosão do solo. Porém, as
suas figuras do presépio precisavam de um local onde pudessem brilhar. Quando
encontrou uma mancha de musgo prometedora, esgadanhou o solo e em pazadas cegas
encheu a saca com grandes quantidades da plantinha verde, caruma, pinhas e tudo
o mais que coubesse na boca apressada da pá. Certificou-se que ninguém o tinha
visto e fugiu para casa. Fechou-se dentro de si e esperou pela sabedoria da
noite.
A sala estava preparada para receber as personagens do presépio. Não havia
lugar para uma árvore com uma estrela no topo, era um desperdício artificial de
tempo. Por isso, apressou-se a forrar a tijoleira com um plástico para depois
escolher e montar o cenário deste ano.
Foi buscar o musgo. Quando passava no corredor reparou em várias gotas que
insinuavam um trilho. Acendeu a luz da dispensa e os seus maxilares estalaram
de espanto. Tudo remexido, fora do lugar e da ordem das coisas. A saca estava
furada, o musgo derramado, juntamente com os embrulhos esventrados. A dispensa
fora violada. Aquele cheiro? A quem pertenceria aquelas gotas de urina?
Correu para a cozinha em busca de algo para imobilizar o intruso. O seu
canivete digno de qualquer alentejano não impunha respeito suficiente. A pá que
ainda continha restos de terra daria uma boa arma. Entrou na exígua dispensa e
com muito cuidado removeu todos os sacos que estavam no chão. Nada. Olhou para
as prateleiras que continham os presépios e os embrulhos e nisto ouviu um
esgadanhar animal. Tocou em todos os sacos para que o intruso se pusesse a
jeito de uma valente pazada. Silêncio.
Dirigiu-se ao seu quarto e retirou da escrivaninha uma lanterna com duas
funções. Desligou a luz e acendeu a primeira função da lanterna. Um círculo de
luz quente iluminou os seus passos. Depois ligou a segunda opção e um espectro
de luz ultravioleta fez brilhar as gotas de urina. Dentro da dispensa apontou o
feixe luminoso para as prateleiras. A caixa de presépio que continha a sagrada família dentro de uma rocha oca brilhava de azul-celeste. A caverna feita de
geodo mineral refletia o espectro ultravioleta, enquanto um pequeno
ouriço-cacheiro brincava de menino Jesus. Ele sorriu. A escolha estava feita.
livros emprestados
não voltam mais
agora são novos livros
nas mãos de velhos outros.
O húmus remexido pelos melros ilumina o rasto das centopeias maria-café pelos escombros da terra húmida, aproveito para plantar dedos em sa...