sábado, 20 de julho de 2024

3:10 Mãe

 




Ao terceiro mês

continuo a abrir a boca 

sem que se oiça qualquer sibilo

no caminho do teu nome.


de todas as palavras que desconheço,

haverá uma que vou reaprender

quando te ouvir perguntar:

como correu o teu dia?


até lá, os farrapos feitos de farpas

enrolam-se aos pés,

mas tu não me deixas cair

no abismo diário do invisível.


quinta-feira, 18 de julho de 2024

A Mobília






Do teu quarto resta os passos gravados no chão 
cicatrizes nas paredes, sulcos da doença do tempo, 
desmaiam reflexos pelos relógios usados na tua calma,
ecos de agonias, tonturas, branco tímido no teu nome.

Não tive coragem nos olhos para deitar abaixo o teu ninho
por isso os homens fortes recolheram a mobília,
levaram o cheiro a verniz e a naftalina das mantas,
assisti a isto: como quem vive dentro de um diário sem o ler.

Acartaram os ossos da cama e as asas espelhadas do roupeiro
a cómoda, as mesinhas de cabeceira suspensas por tábuas
feitas pelos ramos de uma árvore que vagueia por aí
na companhia de borboletas nocturnas vigilantes.

terça-feira, 9 de julho de 2024

Leitura portátil: Fome de Knut Hamsun

 


 

Quantas vezes levei comigo a “Fome” de Knut Hamsun para os hospitais, transportes públicos, jardins, praias e bocas de mar, sem desfolhar uma ideia ou passar o dedo pelas rugas destas páginas?

Sim! Esta obra acompanhou-me durante muitas horas deste ano. Até agora, o ano mais complicado da minha vida.

Passeei o livro como se passeia, lado a lado, com um amigo de poucas palavras, mas fortes convicções. Os dois desabafámos sobre as nossas capas e o peso do amanhã. Eu e o livro fechámos olhares para não cair na tontura esfomeada deste mundo. Quando chegava o momento de abrir o miolo do texto e sorver sensações, temia que a nossa viagem terminasse. Adiava o precipício do fim. Mesmo não sabendo, ao certo, quantas páginas temos de desflorar sem que os olhos reclamem a derrota da mansidão.  Com calma,  folheava páginas terna e lentamente. A vida não pode esperar, contudo eu perferia a lassidão de me perder nas palavras do autor e deixar-me a marinar por aí.

A “Fome” declara-se tão cruel como comer madeira ou mastigar a nossa própria carne ainda quente. A voz deste livro segredou-me aventuras solitárias de quem escreve para sobreviver, mas não vive para escrever, resiste estoicamente para não secumbir aos dissabores do quotidiano. Afinal, fazer o que mais se ama, sem prestar contas a ninguém, tem o seu preço. Depois de tantos garfos enfiados goela abaixo, redescobri nesta "fome" a carcaça dura e bolorenta que nem os ratos lambem. Aquela insatisfação constante que nos amassa o estômago e logo após os espasmos iniciais, somos impelidos a continuar, dia a dia, em frente, sem saber como, arrastando os pés ensanguentados.

De prato tantas vezes cheio de pequenos nadas que nem à miséria se lembra.


Quando a terra me chamou

  Dormia sob o respaldo dos antidepressivos quando um tremor sacudiu a cabeça da cama, enleou-se nos meus pés com a força das algas vivas, s...