sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Um livro perdido




Alguém esqueceu-se de um livro no banco do jardim.
Um estranho livro onde as palavras não tinham lugar,
Sem histórias ou memórias para recordar
Um não-livro cheio de números e fórmulas,
Da mais Indecifrável bizarria ou simbológica trama.

Uma vez aberto,
Das suas páginas um bafo gélido fazia-se sentir,
De tão mudo e frio secava a imaginação e gelava os ossos.
Repleto de números vivos em filas vertiginosas a escorrer pelas páginas,
Com centenas de símbolos dentro do espanto das folhas:
Triângulos dentro de rectângulos, hexágonos dentro pentágonos, 
Folhas e mais folhas cheias de pontos, tangentes, secantes,
Ângulos rectos e circunferências prenhes assim ⊙ 

Um livro sem abecedário, autor ou chancela
De capa dura feita de tripas de animal secular,
Manuscrito em sangue escuro e papel cru e velho,
Quem queria um livro destes?
Um livro sem amanhã, companhia, aperto d'alma ou aconchego nos olhos?
Quem quereria um livro sem voz?
Por isso deixei-o estar no local onde o esqueceram
E aproveitei o sol de um dia abençoado. 

Dois dia depois voltei ao jardim e chovia solidão em todos os bancos, recantos, caminhos e lagos,
Nem os patos se mostraram ou as orquídeas medravam,
Contudo o livro lá estava no mesmo sítio,
Incompreensivelmente seco.
De leitura virgem e intocável.
De raiva desfolhei-o vezes sem conta, 
De trás para a frente, de cima para baixo, sacudiu-o e atirei-o ao ar,
Sem que uma ideia caísse e com isto veio o frio na espinha a dor e a urgência.
Rendidos ficámos, um na mão do outro, à espera que as histórias parassem de chover.


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