sexta-feira, 25 de abril de 2014

A dimensão das Portas de Ródão - Tejo Internacional


Quando cheguei a Vila Velha de Ródão, distrito de Castelo Branco, o céu estava completamente encoberto por nuvens escuras. Porém, houve algo que despertou a minha atenção pelo inatingível espanto que criava. Em cada margem do Tejo, dois portões gigantes de madeira, com mais de cem metros de altura, vedavam a passagem fluvial do rio, unindo margens, formando uma ponte invulgar. Era uma construção inacreditavelmente alta e de contornos tão inacessíveis quanto belos. Como era imponente essa magnífica estrutura que irrompia da rocha crua, estendendo-se a toda a largura do espelho de água e das suas margens. 

À minha frente, onze homens faziam fila em direcção ao portão gigante. Aproximei-me. Um desses homens disse-me que aguardava passagem para o outro lado, contudo o acesso obedecia a certas regras. Quem quisesse atravessar o rio ou os montes das margens tinha que contar o seu último sonho a um guardião. No caso, uma anciã, vestida de negro, com um sorriso simpático e de olhos da cor do Tejo. Ela aguardava pacientemente sentada numa pedra branca a chegada dos candidatos. Se porventura houvesse quem não se recorda-se do sonho, não valia a pena vir. Ela não perdia tempo com faltas de memória ou hesitações estéreis. 

A anciã, depois de ouvir o sonho, decidia se o sonhador era digno de passar para o outro lado ou não. Se a história fosse aprovada, uma porta na estrutura abria-se. Caso contrário, fazia sangrar lágrimas a quem tivesse sonhos que ela julgasse impuros ou maliciosos. E não valia a pena mentir, pois os aldrabões eram detectados com as primeiras falas. Ela ouvia o que lhe tinham para contar e procurava nos olhos do sonhador razões que justificassem a passagem. Ao mesmo tempo manuseava um ramo de oliveira com azeitonas, como quem toca nas contas de um rosário. Se a anciã ficasse com uma azeitona ainda verde na mão, o sonhador estava em apuros; contudo, se a azeitona que calhasse em sorte fosse negra e o sonho bem explicado, então o sonhador tinha passagem garantida. Assim era filtrado o acesso a uma nova dimensão. A denominada dimensão de Ródão. 

Perante isto coloquei-me na fila e aguardei pela minha vez. Rapidamente fiz um esforço para me lembrar do meu último sonho e nas consequências que daí podiam advir. Na última noite sonhara com uma ave preta e branca com patas e bico vermelho (creio tratar-se de uma cegonha-preta). No meu sonho, um amigo meu segurava a ave, abrindo e fechando as asas do bicho, repetidamente, como se o animal se preparasse para voar. Sem lógica aparente, este era um sonho bizarro e com múltiplas interpretações, aliás como todos os sonhos. Verdade seja dita; o meu amigo gostava de aves em particular e de animais em geral, tal como eu. Portanto, a razão pela qual o ostentava uma cegonha- preta como uma marioneta, talvez fosse resultado da minha ansiedade em observar pela primeira vez essa ave. Para ser sincero, não acreditava na defesa do meu sonho. A anciã iria descobrir a verdade escondida nas minhas palavras. Ou seja, a cegonha preta estava morta e o meu amigo brincava com o corpo do animal dizendo: "Queres ver uma destas?". Ninguém escolhe as motivações dos seus sonhos, porém, o mais certo seria ficar ali a sangrar lágrimas durante dias. Mas se por algum motivo me fosse concedida passagem; o que me esperaria na dimensão de Ródão? 

A resposta foi dada quando um comboio amarelo e pequenino, quase de brincar, apitou e entrou num túnel escuro, que atravessava o enorme rochedo. Nesse momento, os portões gigantescos de madeira desapareceram das margens do rio, tal como os homens que faziam fila para passar e a misteriosa anciã que perscrutava sonhos. A paisagem ocupou o seu lugar e nunca o nada fora tão belo. Procurei respostas mas a realidade voltou a chamar-me com o apito do comboio, antes da locomotiva ser engolida gradualmente pelo túnel. Assim era a ferrovia da Beira-baixa.

Afinal, o homem ludibriou a dureza da rocha e arranjou maneira de encurtar distâncias entre materiais inamovíveis e os sonhos. Volvidos alguns instantes, segui os carris de metal e subi a um pequeno rochedo de onde se avistava todo o encanto do rio Tejo e as Portas de Ródão. A imponência da paisagem merecia um momento de contemplação. Sorri com esplendor livre da natureza e com as suas incríveis máquinas voadoras. Uma hora depois, quando voltava para o carro, cruzei-me com uma senhora idosa, com um olho verde e outro azul, de sorriso estampado no rosto, e um raminho de oliveira na mão; ela disse-me bom dia e o sol apareceu.





Algumas fotos que deram origem à ficção.

Portas de Ródão e as escarpas com  aproximadamente 170 metros de altura
A linha férrea da Beira-baixa e o esplendor das Portas de Ródão. 
As cambiantes do rio Tejo num dialogo com o céu.
Numa fraga o olhar atendo do grifo sentinela.
 Depois, a ave decidiu sobrevoar o rio aproximando a imaginação entre margens. 



Ao  longe, quase perdida entre a vegetação e o rio, o voo da cegonha-preta (Ciconia nigra)

Mesmo a chover a cegonha-preta voava para além do limite dos sonhos.












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