quarta-feira, 6 de julho de 2016

O namoro da cobra

Para combater um final de tarde demasiado calmo decidi fazer uma caminhada. A temperatura amena apelava ao exercício físico e à redescoberta da última luz do dia. Levar ou não levar a máquina fotográfica foi a questão que facilmente respondi, quando olhei de soslaio para a pequena mochila aberta e cheia de esperança. Atrás de mim a porta fechou-se e a rua era enorme.

Depois de atravessar um terreno baldio, verifiquei que o mato estava aparado, perfazendo um caminho fofo de ervas secas. Prossegui com o intuito de fazer pelo menos 4 quilómetros. Pelas veredas encontrei algumas borboletas irrequietas e andorinhas com os seus voos rasantes mas nada colaborantes a uma amigável foto. Continuei até que cheguei perto de uns bancos de pedra onde outrora os namorados declamavam poemas e carícias. Eu fiz parte desses casais. Lembrei-me desse tempo e retive-me por alguns instantes a reviver esses momentos. Depois de revisitada essas memórias reparei que algo próximo de um banco se elevava no ar em curvas aéreas. Inicialmente pareceu-me a cauda de um felino, porém abandonei desde logo essa parecença pelo reflexo brilhante que a dita cauda imanava. Há distância que me encontrava, ainda tentei com a máquina focar, porém não consegui. Dei mais uns passos e...

Não podia ser uma cauda de um felino porque, por norma, a cauda dos gatos têm pelo, salvo honrosas excepções, mas acima de tudo, e por enquanto, os gatos ainda não brilham. Muito menos seriam ratos rapados ou cães depilados. Fosse como fosse, não era uma mas sim duas coisas escuras, erectas e brilhantes, numa dança curiosa e compassada. Aproximei-me até perto dos bancos de pedra e fiquei fascinado...

Ali estavam duas cobras-de-ferradura (Coluber hippocrepis) a namorar, enroladas uma na outra, num acto de entrega e cumplicidade, onde outrora amantes se comprometiam de intenções. Confesso que ainda pensei se não seriam um casal de namorados enfeitiçados, transformados em mitológicas serpentes. Deixei-me de disparates e tirei uma fotografia, e claro nisto de intimidade e juras eternas, ninguém gosta de ser interrompido nem incomodado. As cobras notaram a minha curiosidade. Por momentos eu e o improvável casal perdemo-nos em olhares cruzados. Chamado à razão, rapidamente fiz um novo registo, a foto ficou em contraluz, Tentei uma outra abordagem e disparei mais algumas vezes. Todavia as cobras enamoradas não tiverem para perder mais tempo comigo e fugiram para o meio do mato. Olhei para a máquina e fiquei contente com o resultado, não tanto pelo recorte estético da fotografia, antes pelo momento único vivido. 

Continuei a minha caminhada, quando regressava, o namoro das serpentes prosseguia no mesmo local e com mesma intensidade. Abusei da sorte ao voltar à carga estúpida da ganância fotográfica. Mal se ouviu os primeiros disparos do obturador as cobras desapareceram abraçadas sem braços ou mãos que as atrapalhassem. 

Fui à minha vida com esta história para contar e as serpentes por certo com um conselho para orientar aos seus descendentes:

Nunca namorem onde outros se enamoraram.




















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