segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

A fala de Amândio Vaga-lume






Por todos os lados, 
os 63 habitantes da Vila adormeciam num sono induzido pelas máquinas mestras
menos um: Amândio Vaga-lume, o homem simples que só falava com as plantas,
jazia inconsciente no meio da plantação onde trabalhava,
após ter tropeçado no garrafão meio vazio de vinho
e apanhado com o cabo da sua enxada no meio da testa,
tombou como um Cristo no epicentro da cultura e por lá ficou.
      
foi nesse instante que surgiram nuvens escuras viúvas de luz,
depois duas síncopes rápidas de apagões.
a terra estremeceu e abriu-se uma fenda como um lanho na carne ferida
emergiram duas pás gigantes em forma de asa de borboleta
que remexeram as entranhas frias da rocha e das raízes mortas.
principiou-se uma erupção metálica concretizada por afiados espigões
que apartaram as margens terrenas em tesouradas mecânicas,
recortando uma cratera nos baldios circundantes.

do interior da boca da terra eclodiu um pequeno painel metálico
em formato de vela  de um qualquer navio pirata
essa estrutura abriu-se num leque e desdobrou-se no dobro do seu tamanho  
depois outra e mais outra, um exercito de velas de fibra metálica perfez um cerco perfeito,
numa extensão de 5 quilómetros, a fronteira da Vila estava traçada.
a fase seguinte demorou poucos segundos a acontecer;
da superfície das velas surgiram órbitas robóticas  
esses instrumentos cegos procuraram captar todo e qualquer feixe de luz
numa fome de insaciável demanda por energia solar.

dos 63 habitantes da Vila,
as máquinas mestras reduziram  para metade os batimentos cardíacos da população adormecida
menos um: o homem simples que só falava com as plantas,
e assim, lentamente, Amândio Vaga-lume recuperou os sentidos e caminhou pelo horto
constatou que em pleno meio dia, a noite era a sua casa e a sua Vila uma prisão.
o perímetro da sua terra estava circunscrito 
por enormes velas metálicas que cresciam em direcção ao céu para resgatar a alma do sol.
sem tirar os olhos das estruturas metálicas que absorviam a luz,
Amândio Vaga-lume via assim a concretização, por parte das máquinas mestras
do seu antigo projecto, aquele sonho perfeito que um dia tivera para a Vila,
antes de um mal do coração lhe ter levado o engenho e a comunicação,
deixando-o sem forma de expressar a fala da tecnologia que tão bem conhecera.
porém nem sempre é bom desejar o que não se conhece;
Amândio Vaga-lume agarrou na enxada e com convicção de quem já muito viu
arrancou pela raiz os girassóis com quem falava e deu por terminado a jorna.

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