segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Vila dos prazeres descalços



Na vila não se falava de outra coisa...
esta manhã a dona Aurora,
púdica confessa todos os dias, incluindo feriados e domingos,
mas capaz de violar o enteado leiteiro no meio de tanta fominha
deparou-se com um fenómeno estranho:
Vários tipos de calçado, suspensos  pelos atacadores nos fios eléctricos baloiçavam ao vento como corpos dependurados,
para que conste: uns mokasans pretos nº36, uns sapatos-vela castanhos nº 42, e umas sapatilhas de ginástica nº 34

E não é que...
cem metros mais à frente, na rotunda, como quem vai para a drogaria do vinagreiro chunga
um casal de jovens em pelota, entretidos na degustação libinal,
marcavam no empedrado em preceito bem aprumado,
uma erótica acrobacia das quais projectavam sombras gigantes num relógio de sol em carne humana
numa alusão espíritos protagonistas do kamasutra
tal não era a composição sexual num acto perene sem desfecho à vista

Era bonito de se ver, tal labor e empenho na satisfação mútua,
a vila centrava-se num fio de baba a escorrer pela boca aberta dos seus habitantes
uns, montados em carros de bois, de velas nos faróis e  pneus em câmara de ar remendada, badalavam chocalhos numa alegre romaria e chinfrineira,
enquanto outros, empoleiravam-se nas janelas batiam tachos e panelas numa algazarra endiabrada;
porém o casal mantinha-se na deles como se nada fosse,
entretidos por fazer cumprir o desejo em acto contínuo

Ora quando a Dona Aurora viu os jovens naqueles impróprios preparos no meio da rotunda em plena circulação diurna
veio de lá com a sua besta de estimação, uma esfregona vileda de última geração, daquelas que chegam aos sítios mais difíceis,
e toca de arrear a bom ritmo nos miúdos que ainda agora descobriam as valências da boca nos sexos e dos sexos nas bocas
Os jovens de tez branquinha e suada, com nódoas negras ficaram de tanta pancada
e com medo de apanhar ainda mais
lá se separaram da boda húmida que os unia
nesse precioso momento uma enorme descarga eléctrica fez-se ouvir
e começou a cair dos fios eléctricos todo o tipo de calçado que ali estava pendurado,
seguiu-se um clarão os jovens nus evaporaram-se

Há quem diga que o casal seriam Anjos dos 7 Pecados ou Demónios alados
opinião contrária teve a Dona Aurora que fez figura de tolinha
com a sua esfregona vileda no meio da rotunda
a esbracejar à maluca num preceito de ébrio policia sinaleiro
nada mais foi igual desde então e toda a população
em memória de tal aparato passou andar de pé descalço
 
Após esse dia a vila foi baptizada com um letreiro
no qual se podia ler:

" Vila dos prazeres em pés descalços, terra dos que fazem em público, aquilo que outros sussurram em privado”

5 comentários:

  1. Quanto a ser Vila, está no seu direito, ainda não lhe deu a mania das grandezas de querer ser cidade à força;
    Quanto aos prazeres, aos "púbicos" e aos "deprivados" (porque "depravados" eram os que liam a verdade em russo)cada qual coma do que gosta, e que lhe faça bom proveito;
    Agora a dos calcantes casados pelos atacadores, "até que a morte os separe", é que eu (ainda) não entendi a que estranho ritual corresponde, e pelos vistos (já não digo pelos cheiros) está a dar forte aqui na região!
    De minha casa quase em S. Domingos de Rana, até Carcavelos, encontro que me lembre três casais de sapatos enforcados...
    Se não os querem, não os desperdicem, lavadinhos
    e arejados, ainda muita gente lhes chamaria um figo, ( ou um Ronaldo, ou um Coentrão...)

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  2. A ficção é sempre melhor que a realidade e neste caso trata-se de uma visão (documentada com uma fotografia) que relata uma vila que podia existir em qualquer parte do mundo dimensional com todos os seus medos e encantos típicos dos seus habitantes, que o diga a dona Aurora...

    Abraço
    SG

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  3. Oh Sergio! Quem sou eu para estragar a ficção!
    Só que como isto anda tudo ligado, e a fotografia é real, (penso eu que não sofreu tratamento "FotoChoque"...)me fez lembrar esta estranha moda ou ritual, ou sei lá o que é...
    Tu sabes? alguém saberá?
    Mesmo que inventem outra ficção... expliquem esta dos sapatos "enforcados"...

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  4. Viva Eduardo, a ficção não se estraga :) ela existe por si só, para além da explicação, quanto à realidade, a história é outra, tangível pelo dia a dia e pelas fotografias que tiramos do calçado pendurado nos fios da electricidade ou de outra coisa qualquer que nos chame à atenção... para escrever.

    Abraço
    SG

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  5. Sergio:
    Concordo! Dou a mão à palmatória! Todos os pretextos são bons para escrever! Dos mais sórdidos aos mais liricos, dos mais surrealistas aos mais estupidos!

    Viva a escrita e quem a apoiar!!!

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