sexta-feira, 4 de março de 2011

O ladrão das boas notícias



Optei por rapar o cabelo depois de ter tatuado no pescoço uma viúva negra
hoje tal como ontem e anteontem não tive visitas
(já não sei o que isso é)
não me queixo sempre tive medo das surpresas que desejava irreais
(é certo que ninguém vai aparecer)
também não recebi nenhuma correspondência
(não é Natal por isso a minha irmã não me vai escrever)
ainda bem...
detesto responder a cartas que não adiantam nada ao que está feito.

Quarenta e cinco quilos e olheiras matinais,
estou mais magricela mas em forma.
quem não emagrece dentro destas paredes ou dentro deste uniforme azul?
não reclamo.
gosto de me ver sem cabelo. a minha companheira de cela também gosta.
ela faz-me certos favores e eu retribuo com certos mimos,
não é assim que é la fora?
Há muitas mulheres da minha idade que davam tudo para ter o meu peso.
elas que venham passar à prisão uns tempinhos e vão ver como ficam no ponto;
sem estrias ou celulite, tudo no sítio, não prometo uma cinturinha de vespa,
mas garanto que ficam jeitosas.

Estou preparada para levar um dia igual a todos os outros.
como é normal tomei banho, fiz ginástica e avancei nos trabalhos manuais,
(dizem que o trabalho com as mãos faz bem à depressão)
o tapete de Arraiolos ( devia dizer tapeçaria de Caxias)
está quase pronto mais um ano e acabo.
tenho tempo, muito tempo, não me posso queixar.
na verdade sinto-me melhor, cada vez melhor.
já lá vai o tempo de revolta e raiva.
tenho consciência que não devo vazar um olho às guardas prisionais,
não vai adiantar nada e quem perde sou eu. sempre foi assim.


De ti
lembro-me (não sei porque razão) daqueles tempos
em que te ajudava a arrombar o marco dos correios
para lermos a correspondência dos nossos vizinhos
tinha dezoito anos e tu vinte e um para aí...
recordo-me daqueles contentores vermelhos que ficavam no fim da nossa rua,
que nós desventrávamos assim num piscar de olhos.
depois fugíamos com as cartas roubadas
e em cima de uma rocha, na praia de Caxias, fazíamos amor
por debaixo das estrelas com o ralhar do mar aos nossos pés,
e passávamos as horas mais longas que as horas sem tempo
a ler,
as cartas dos outros, as dores dos outros e as proximidades que nos afastam
não sei...
porque insistes que eu te receba nesta cela que desenhaste
num dia de destino tardio
para nós.
sei que hoje não vens atormentar-me com a tua sombra branca
de terapeuta da fala.

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