sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Parabéns minha querida Mãe!




Fazias hoje 78 anos minha Mãe,

no teu aniversário oferecia-te uma rosa

e dava-te um beijo dizendo "muitos parabéns",

como se fossemos crianças felizes

no intervalo do recreio desta vida.



Tu aceitavas as rosas e buscavas uma jarra

onde ajeitavas as flores em direção ao sol,

e enchias com água corrente e pura,

como o nosso olhar encadeado pelo sorriso das batalhas

que vencemos mesmo perdendo.


Depois almoçávamos num restaurante chinês

de que tu tanto gostavas e onde o Pai perguntava

"onde está o pão, os chineses não fazem pão?"

numa doce teimosia de uma árvore que não tomba

 no final comíamos um gelado frito em run com um café da sorte

e voltávamos para casa a ralhar com o tempo.


Hoje quase tudo foi diferente.

pedi ao padre da paróquia que na missa ao invocar o teu nome

cala-se o buraco que trago no corpo e por onde

choram dias numa lâmina de ausência.



No cemitério fiz caminho até onde descansas,

repeti o ritual do teu aniversário:

o beijo, as rosas, os sorrisos e a luz.

fechei os olhos e num restaurante que ainda não existe,

os corpos de luz puseram a mesa a preceito,

para que ao almoço tivéssemos pão para partilhar,

numa outra membrana de vida por descobrir.


Parabéns minha querida Mãe!


sábado, 21 de dezembro de 2024

Conto de Natal - O colecionador de presépios

 

Uma vasta coleção de presépios, provenientes dos mais diversos cantos do mundo e concebidos com os mais variados materiais alegravam os seus olhos. Todos os anos elegia um conjunto de figurinhas para as festividades. No ano passado, o presépio eleito foi esculpido em osso, muito bem elaborado, até parecia que as estatuetas sorriam com as sombras. Todos os anos fazia pequenos embrulhos para oferecer a quem já não os podia receber. Junto ao presépio ele abria os presentes dirigidos aos mortos e rezava. Era uma forma de dar vida aos vários nomes com que batizava a solidão.

Nos primeiros dias de dezembro, de manhã cedo, dirigia-se a uma quinta abandonada onde enchia de musgo uma saca de serrapilheira. Ele sabia da importância do musgo para reter a água e prevenir a erosão do solo. Porém, as suas figuras do presépio precisavam de um local onde pudessem brilhar. Quando encontrou uma mancha de musgo prometedora, esgadanhou o solo e em pazadas cegas encheu a saca com grandes quantidades da plantinha verde, caruma, pinhas e tudo o mais que coubesse na boca apressada da pá. Certificou-se que ninguém o tinha visto e fugiu para casa. Fechou-se dentro de si e esperou pela sabedoria da noite.

A sala estava preparada para receber as personagens do presépio. Não havia lugar para uma árvore com uma estrela no topo, era um desperdício artificial de tempo. Por isso, apressou-se a forrar a tijoleira com um plástico para depois escolher e montar o cenário deste ano.

Foi buscar o musgo. Quando passava no corredor reparou em várias gotas que insinuavam um trilho. Acendeu a luz da dispensa e os seus maxilares estalaram de espanto. Tudo remexido, fora do lugar e da ordem das coisas. A saca estava furada, o musgo derramado, juntamente com os embrulhos esventrados. A dispensa fora violada. Aquele cheiro? A quem pertenceria aquelas gotas de urina?

Correu para a cozinha em busca de algo para imobilizar o intruso. O seu canivete digno de qualquer alentejano não impunha respeito suficiente. A pá que ainda continha restos de terra daria uma boa arma. Entrou na exígua dispensa e com muito cuidado removeu todos os sacos que estavam no chão. Nada. Olhou para as prateleiras que continham os presépios e os embrulhos e nisto ouviu um esgadanhar animal. Tocou em todos os sacos para que o intruso se pusesse a jeito de uma valente pazada. Silêncio.

Dirigiu-se ao seu quarto e retirou da escrivaninha uma lanterna com duas funções. Desligou a luz e acendeu a primeira função da lanterna. Um círculo de luz quente iluminou os seus passos. Depois ligou a segunda opção e um espectro de luz ultravioleta fez brilhar as gotas de urina. Dentro da dispensa apontou o feixe luminoso para as prateleiras. A caixa de presépio que continha a sagrada família dentro de uma rocha oca brilhava de azul-celeste. A caverna feita de geodo mineral refletia o espectro ultravioleta, enquanto um pequeno ouriço-cacheiro brincava de menino Jesus. Ele sorriu. A escolha estava feita.

 

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

104 degraus

 

pela escadaria em esforço

subo a cicatriz do mármore 

enquanto os joelhos de cana velha cedem

(mas não me agarro ao corrimão!)

 

falha-me a junção da força motriz, 

como fosse ceifado por um stick de hóquei,

a vergonhosa dor leva-me a lamber o chão 

(não quero agarrar-me a nada! a nada, ouviste?)

 

recomposto, estou quase a atingir o último piso,

os joelhos gelatinosos bamboleiam,

os degraus vencidos celebram a minha última primavera   

são estas as vitórias de um homem de meia idade  

(coração aos pulos, sorri pá, sorri!)

 

escolhi as escadas para não ver ningúem!

 destilo sozinho a aguardente de lágrima

sinceramente...

a mulher que entrou no elevador

não era das colegas mais apessoadas.


sábado, 16 de novembro de 2024

Raposa-orelhuda ou raposa-orelhas-de-morcego? Para mim raposa com orelhas de abano.



Ainda o sol  lavava o rosto com areia vermelha, já em Samburu, Quênia, o calor tornava-se impiedoso para todos os bichos. A sombra dos arbustos era um verdadeiro  achado no meio de uma vegetação rasteira. Não fossem as suas orelhas estrondosamente grandes, quase passava despercebida esta raposa-orelhuda Otocyon megalotis, quando passou por ela um jipe com humanos incautos. É uma pequena raposa com apenas 45 centímetros, incluindo a cauda, pesando cerca de 3 quilos, exibe as suas orelhas de abano com a função de termorregulação, distribuído o calor pelo corpo, servindo também de radar na localizando das suas presas. Eram 5 raposas e nós 5  espantalhos sortudos em cima de um tronco com 4 rodas.










sábado, 9 de novembro de 2024

Leitura Portátil: Juan Rulfo - Pedro Páramo

 



Este foi o primeiro livro que li depois da partida da minha Mãe. Companheiro de horas solitárias, passadas na sombra, na sabedoria das árvores, no sono confuso das primeiras horas do metropolitano, ou na espera que uma tempestade deixasse um aeroporto em paz. Um pequenino livro, um gigante complexo. Li pouco em casa porque dói-me muito estar aqui, dentro da membrana desta lágrima. Estas são também as paredes de um livro com uma dor em comum, a perda e a ausência de respostas para essa falta. 

Não é um livro fácil, mas é um livro único. As constantes vozes que surgem de forma inesperada alertam-nos para acontecimentos que mais à frente iremos entender, (ou não) e apelam a uma releitura atenta. Várias vezes reli as páginas anteriores para entrar no ritmo, porém nem sempre resultou e por vezes senti-me ainda mais perdido. O realismo mágico dos mortos enterrados na aldeia e os seus diálogos, elevam esta obra a um patamar de ficção fantasmagórica.  

Tudo começa quando no leito de morte, a mãe do narrador pede que procure o paradeiro do seu pai Pedro Páramo, numa pequena aldeia mexicana chamada de Comala. Um local deserto, quente e árido, onde o mesmo inicia a busca pelo seu pai, ouvindo relatos sobre o homem mais poderoso e com mais influência naquelas paragens. Depois entram histórias dentro de histórias. Jogos de influências, chantagens e mortes deixando-nos atordoados e sem saber que livro temos nas mãos. Será este o mesmo livro que comecei a ler? Por certo que sim. Mas ainda não sabes onde isto te vai levar. O que é bom!

Respiramos pó num ambiente ressequido que nos mirra a boca. De página em página vasculhamos um labirinto intencional de equívocos. Para encontrar respostas (nunca definitivas) vamos ter que voltar e escavar com as mãos a história para nos perdermos novamente... Qual vida qual carapuça! 

E Juan Rulfo escreveu:

" Aquilo está sobre as brasas da Terra, na própria boca do Inferno. Basta dizer-lhe que muitos dos que lá morrem, quando chegam ao Inferno, regressam em busca do seu agasalho. “




quinta-feira, 31 de outubro de 2024

o espinho

 

o corpo da madrugada 

incendeia o suor 

das bocas ao toque

no óxido das gaiolas 


as nuvens libertam-se

do céu enferrujado 

e as aves beijam-se

uma última vez


esqueci-me de te dizer:

as chaves orfãs de casa

estão guardadas no coração 

da porta - junto ao cacto centenário


quando entrares

não faças barulho

cuidado com os espinhos

a morte morreu.



quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Ontem na Damaia

 

pela goela do bairro 

resvalam tiros 

ardem autocarros 

queimam-se luas


caem fogueiras na rua 

a morte é sequestrada

quando a razão não tem cor

a vida é una.




domingo, 20 de outubro de 2024

6 meses depois da tua partida

 


a lágrima percorre a raiz

na palma da mão

desenha a curva 

perfeita das tuas iniciais. 


pergunto a Deus

o que fez de ti?

para além de minha Mãe forte 

meu eu incompleto.



sábado, 19 de outubro de 2024

O enganado

 


Não volto a adiar a alma do vinho

Abro uma garrafa agora mesmo!

Não volto a ter medo de começo

mesmo que persinta que vou sangrar no fim.

 

Libertarei todas as lágrimas incomodas e matreiras 

sempre que me apetecer, esteja onde estiver,

e abrirei as janelas do riso em uivo ou gargalhada 

mesmo tendo a boca inchada com crostas de sal.

 

Digo e repito: amo-te! talvez com a mesma facilidade

com que chego aos pés com os dedos das mãos,

criticarei os actos alheios sem pejo da circunstância

com a mesma inocência de uma criança reguila.

 

Rapo o cabelo, pinto a barba, darei azo a todos os devaneios

na urgência com que beijo este espelho partido,

esperando que alguém do outro lado me estremeça,

ou me leve para a terra "do que não fui capaz de fazer"

 

Se tiver que ser, que seja de pé, com amor.

não volto a contar as balas de um velho revolver,

ou remediar as solas dos sapatos antevendo pedradas nas costas

sabes de uma coisa? 

 

A última vez que a morte passou por estes lados

não fez parcimónia nem poupanças.


sábado, 7 de setembro de 2024

Quando a terra chamou

 




Dormia sob o respaldo dos antidepressivos

quando um tremor sacudiu a cabeça da cama,

enleou-se nos meus pés com a força das algas vivas,

segredando-me espasmos em forma de nome.

 

só podias ser tu a chamar-me;

de punhos agrilhoados ao lençol gritei: "já vou Mãe!"

a tua ausência física saturou o ar de prata espectral,

sei que estás aqui mesmo que não te veja no vidro solar.

 

pela fisga do subterrâneo o prédio desviou-se do eixo,

das pulsações da cama o quarto pequeno mais prisão ficou,  

sem saber a quem pertenço ouvi a terra gritar dores maiores;

disse e repeti: "Mãe estou aqui!"

 

em segundos tudo se moveu mais do que em 50 anos

redigidos em montes, serras e cidades subaquáticas;

desta vida pouco levo e os recibos que vou passando 

 continuam a ter a tua assinatura.




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Sismo sentido em Portugal dia 26 de agosto de 2024, pelas 05:11 da manhã, com 5.3 de magnitude, sendo o epicentro a 8 quilómetros a oeste de Sines.




sábado, 24 de agosto de 2024

Mês 4

 

à janela

esperavas o regresso

do teu filho

(procuro-te no nosso altar)


ao sair de casa dizias

para conduzir com cuidado

"vai devagarinho - estás a ouvir?"

(não ultrapassava os 80 km/h na autoestrada)


antes de fechar a porta:

"até amanhã se Deus quiser!"

num anseio pelo regresso de outro sol

(ainda hoje oiço o teu eco)


a repetir vezes sem conta:

"nunca se sabe o dia de amanhã"

"levanta-te e ri" "qual médico, qual carapuça!"

"água e vento é meio sustento"


assim vai a ronda negra pela saudade

frases rápidas, eléctricas, instantes em avalanche,

dor que nem a memória se lembra igual.

(eu em frente à tua fotografia onde sorris)


terça-feira, 6 de agosto de 2024

O sapo e o beijo da chuva





Às primeiras horas da manhã, o carro avançava por uma estrada de terra batida com várias poças de água, resultado da noite anterior de chuva e murmúrios. Os pneus, ao entrar na primeira cratera alagada, fizeram saltar centenas de pequenos sapinhos (com menos de 5 centímetros) atarantados com a invasão. Eram tantos anfíbios que cobriam a estrada aos pulos, tentando salvar a vida. O carro parou. Eu olhei para os bichinhos, como se na noite passada tivessem chovido sapos dentro de cada gota de céu. Isto aconteceu na Grécia, no lago Kerkini, mas podia ter ocorrido em qualquer lugar onde haja uma lágrima de esperança. Depois o carro avançou lentamente tendo como destino a próxima nuvem de chão.

sábado, 20 de julho de 2024

3:10 Mãe

 




Ao terceiro mês

continuo a abrir a boca 

sem que se oiça qualquer sibilo

no caminho do teu nome.


de todas as palavras que desconheço,

haverá uma que vou reaprender

quando te ouvir perguntar:

como correu o teu dia?


até lá, os farrapos feitos de farpas

enrolam-se aos pés,

mas tu não me deixas cair

no abismo diário do invisível.


quinta-feira, 18 de julho de 2024

A Mobília






Do teu quarto resta os passos gravados no chão 
cicatrizes nas paredes, sulcos da doença do tempo, 
desmaiam reflexos pelos relógios usados na tua calma,
ecos de agonias, tonturas, branco tímido no teu nome.

Não tive coragem nos olhos para deitar abaixo o teu ninho
por isso os homens fortes recolheram a mobília,
levaram o cheiro a verniz e a naftalina das mantas,
assisti a isto: como quem vive dentro de um diário sem o ler.

Acartaram os ossos da cama e as asas espelhadas do roupeiro
a cómoda, as mesinhas de cabeceira suspensas por tábuas
feitas pelos ramos de uma árvore que vagueia por aí
na companhia de borboletas nocturnas vigilantes.

terça-feira, 9 de julho de 2024

Leitura portátil: Fome de Knut Hamsun

 


 

Quantas vezes levei comigo a “Fome” de Knut Hamsun para os hospitais, transportes públicos, jardins, praias e bocas de mar, sem desfolhar uma ideia ou passar o dedo pelas rugas destas páginas?

Sim! Esta obra acompanhou-me durante muitas horas deste ano. Até agora, o ano mais complicado da minha vida.

Passeei o livro como se passeia, lado a lado, com um amigo de poucas palavras, mas fortes convicções. Os dois desabafámos sobre as nossas capas e o peso do amanhã. Eu e o livro fechámos olhares para não cair na tontura esfomeada deste mundo. Quando chegava o momento de abrir o miolo do texto e sorver sensações, temia que a nossa viagem terminasse. Adiava o precipício do fim. Mesmo não sabendo, ao certo, quantas páginas temos de desflorar sem que os olhos reclamem a derrota da mansidão.  Com calma,  folheava páginas terna e lentamente. A vida não pode esperar, contudo eu perferia a lassidão de me perder nas palavras do autor e deixar-me a marinar por aí.

A “Fome” declara-se tão cruel como comer madeira ou mastigar a nossa própria carne ainda quente. A voz deste livro segredou-me aventuras solitárias de quem escreve para sobreviver, mas não vive para escrever, resiste estoicamente para não secumbir aos dissabores do quotidiano. Afinal, fazer o que mais se ama, sem prestar contas a ninguém, tem o seu preço. Depois de tantos garfos enfiados goela abaixo, redescobri nesta "fome" a carcaça dura e bolorenta que nem os ratos lambem. Aquela insatisfação constante que nos amassa o estômago e logo após os espasmos iniciais, somos impelidos a continuar, dia a dia, em frente, sem saber como, arrastando os pés ensanguentados.

De prato tantas vezes cheio de pequenos nadas que nem à miséria se lembra.


quinta-feira, 20 de junho de 2024

A tua porta

 

oiço o lamento na brancura da porta onde tu eras tu,

com a janela aberta o vento empurra abecedários,  

as dobradiças abrigam à fuga do tempo melodioso,

o som só é interrompido pelo músculo da fechadura.


fico à espera que tu segures na porta branca e digas...

fico à espera que circules no corredor apertado e suspires...

espero ver-te mais uma vez junto à janela a olhar para...

fico à espera que me chames filho.



sábado, 8 de junho de 2024

Só hoje, trovoada sem iva


 as nuvens tropeçam umas nas outras

das janelas cinza irrompem roucas trovoadas,

quebram-se vitrais, caixilhos e taipais,

promovendo a preocupação dos anjos...


com a lâmina da chuva nas penas brancas,

e a fragilidade da nossa cabeça.

sábado, 1 de junho de 2024

A roupa de luto

 


Dobro a roupa sideral, a tua última indumentaria feliz,

construo montanhas com peças do teu vestuário,

ordenadas por estação, na página gasta do colchão,

as mãos choram o linho que te serviu de aconchego.


eu luto e dizem-me que isto é fazer o luto!

choro pelos dias que nunca mais serão nossos, 

pelas sestas da tarde e pelos nossos incógnitos almoços,

chamo-te, grito-te, acordo-me de joelhos na realidade.


fecho a porta do teu quarto para que a roupa respire,

a luz imensamente branca, o tamanho da tua falta.

 

segunda-feira, 20 de maio de 2024

Um mês depois de partires

Um mês sem ti minha querida Mãe.

o chão apartou-se em abismo, 
o mar afundou-se em lágrima,
o céu elevou-se em escadaria 
e as estrelas redigem diários nas janelas.

Cada intervalo na caligrafia da tua saudade,
ocupa a ferida neste coração onde adormecermos,
sinto o sussurro da tua brisa na manhã que há de vir. 

segunda-feira, 6 de maio de 2024

A batalha do cuco


Ar e vento já é meio sustento" Para desanuviar a cabeça destes tempos complicados, aceitei o convite do meu amigo José Frade para ir fotografar um cuco-canoro à Mourisca em Setúbal. A vida é uma batalha e não se mede pela dimensão dos problemas, mas sim pela determinação das nossas acções para os enfrentar. A pequena ave que surge no final do vídeo concordaria comigo certamente.



sábado, 4 de maio de 2024

3:10



Não te liguei para combinarmos o almoço

tampouco para salvaguardar o teu bom sono,

o telefone reclamou pela tua voz,

mas o silêncio de sal sulcou a realidade.


dói-me onde não estás

o vazio que ocupas é esmagador,

as tuas singelas casas são flores que se fecham à noite

o dia é curto e tão depressa não saberei florir.


nesta dimensão sangro a tua saudade,

por aí, imagino que estejas a fazer um doce café,

talvez por essa razão, acordo às 3:10 da manhã,

hora a que disseste Adeus à última pedra do nosso nome.


sábado, 27 de abril de 2024

ao 7º dia




Mãe, agora que me faltas,

respiro numa busca espontânea

a tua ausência de cristal

quando resistias na leveza de uma pétala.


Procuro-te nas nossas rotinas, naquela ida às compras,

nos corredores abandonados do supermercado,

no assento esquerdo do carro,

nas tuas boas noites que me serviam de ansiolítico.


Também no linguajar das correntes de ar e nos sinos de vento,

nas praias onde me ensinaste a construir sonhos de areia,

no teu quarto onde está o pote com as tuas cinzas,

tapado com a tua mantinha preferida de ninho.


Na tua janela que continua com o estore a meio,

para que vejas o espreguiçar dos ramos verdes,

do canto dos pássaros cá de casa e na luz...

que no fim da tarde alimenta os poros da porta.


Ou nos sensores de movimento que acendem luares,

quando passo à tua procura  entre a membrana das paredes,

uma casa tão vazia que se estende em deserto

ou nas tuas fotografias que ganham raízes nas minhas artérias.



sábado, 20 de abril de 2024

M22

 



Uma lágrima faz estremecer o vinco do lençol

imaculado como uma flor ainda sem nome,

há dias em que as palavras são audíveis rasgos de esperança,

outros, os opioides engolem-te para dentro de um anel de silêncio.

às 17:45 apanho o autocarro M22 que desembarca no hospital,

são 40 minutos em que observo o movimento de outras vidas,

de outras estradas, das casas que vão desaparecendo em contagem decrescente,

depois de o caminho estar feito, falta-nos dias em que reinámos mundo.

Mãe ninguém sabe quando passa o próximo...





sábado, 6 de abril de 2024

papoila de corda


as papoilas vivem o tempo suficiente para secar uma lágrima interior.

a luz primaveril enxagua as cores que nos faltam nestas planícies diárias. 

não sei dos meus óculos. creio que tenham vontade própria quando refugiam-se dentro de imagens que nunca vou ler.

Esgravatar

O húmus remexido pelos melros ilumina o rasto das centopeias maria-café  pelos escombros da terra húmida, aproveito para plantar dedos em sa...