sábado, 29 de dezembro de 2018

Caminhada por Monsanto


E assim fomos à descoberta do pulmão da cidade Lisboa, a passear pelo Parque de Monsanto, efectuamos no total quase 8 km, sem grande esforço e com o contentamento de estar entre amigos. Principiámos a caminhada às 10:00 e terminámos às 15:00, a temperatura estava amena, e as pernas prontas para o desafio. O percurso efectuado está no mapa e foi curioso verificar a dinâmica do parque durante o fim-de-semana, com muitos caminhantes e corredores, outros a andar de bicicleta e outras ainda a passear o cão, infelizmente muitos deles à solta, não servindo de nada o aviso de que os bichos deveriam andar com trela e talvez alguns donos. Porém do modo geral, as pessoas eram educadas, e cumprimentam quem fazia como eles um percurso de manutenção ou um simples passeio, salvo raras excepções, de quem pensa que o parque é só deles, e quase atropela de bicicleta quem lhe apareça pela frente. O Parque Florestal de Monsanto apresenta um grau de limpeza aceitável, com trilhos marcados e placas informativas nem sempre no melhor estado de conservação. Creio que estejam a faltar infraestruturas de apoio, como WC e fontes, tal como a manutenção do parque infantil da pedra. Fiz esta caminhada relativamente leve, transportando dentro da mochila apenas a máquina fotográfica com uma objectiva 18-140 mm, uma garrafa de água, fruta, uma sandes e uma barrita energética e esperança no coração.



Este passeio serviu também para observar a biodiversidade e a interacção com a carga humana num fim-de-semana de sol pós natalício. Nas zonas mais húmidas vimos alguns cogumelos já em decrescente recorte e decomposição mas sempre de magnificente beleza. Nas zonas mais arborizadas e recônditas, observámos 21 espécies de aves, e ainda ouvimos um esquilo a descascar afincadamente uma pinha.
Em breve, iremos repetir estas caminhadas pelo Parque Florestal de Monsanto mas por outros locais. Antes disso, deixo aqui os momentos fotográficos possíveis e desde já aconselho este percurso, sem cãozinho ou com cãozinho pela trela, com calçado e indumentária confortável para a época do ano e binóculos. Bons passeios e um excelente ano 2019.

No reino Fungi e seus dignos representantes:








Depois, segui-se o tão saboroso quanto colorido medronho.


Na sombra a busca do sol e da água do musgo.


Lá em cima uma águia-de-asa-redonda controlava as movimentações dos caminhantes.




Agradecimentos:
Nuno
Sandra

sábado, 22 de dezembro de 2018

Uma borboleta num mundo de carvão


Urge fazer coisa diferentes. Sempre que posso, tenho necessidade de experimentar outras vertentes fotográficas e arriscar abordagens que agitem e estimulem a imaginação. Entre o registo cientifico de e a representação "artística", muitas vezes fico sem saber para que lado pender, e muitas vezes, opto pelo imediato, arrependendo-me mais tarde. Fico com aquela sensação de que podia fazer melhor ou ao menos de outra forma.

Depois da gestão de dúvidas e algum idealismo, sai de casa com a ideia (preconceito)  de criar imagens a preto e branco de uma cidade vegetal. Mais concretamente uma civilização povoada por estranhas flores, folhas assimétricas, pétalas desfocadas e caules transparentes nas suas deambulações em torno de uma estrela qualquer.
Estava ciente que seria algo não muito concreto como tal fiz uns esquissos na minha cabeça, para depois escolher as ferramentas que se adequavam a essa tarefa. Para tal utilizei duas lentes inteiramente manuais: Uma Telemegor 105 mm f5.5 e uma Lens Baby 50 mm f2.8. Para não andar carregado não levei comigo um tripé (má opção). Tanto pela qualidade óptica como pela estabilidade, a definição das fotografias não foi a melhor, mas também não seria a nitidez aquilo que se pretendia. Os trabalhos não ficaram nada de especial. Para além do efeito bublle criado pela Telemegor e das zonas desfocadas com arrastamento da Lens Baby, andava à procura da tal urbe vegetal misteriosa, contudo não encontrei nada que se assemelhasse com o imaginado, por entre várias plantas que visualmente explorei.

Já estava a arrumar as lentes e a paciência na mochila, quando poisou uma borboleta-cauda-de-andorinha numa planta a uns dois metros de mim. O dia não estaria completamente perdido. Bem vistas as coisas, o somatório da borboleta com a planta originou um momento interessante, que só por si saía fora do que inicialmente tinha projectado, contudo a conjugação dos dois elementos e o ângulo de foco escolhido tinha algo de visualmente misterioso. É verdade que não era o que andava à procura, porém seria algo que saciava por momentos a minha fome por novidade. Sem olhar às dores de costas, deitei-me na vegetação e entretive-me a registar a adoração da borboleta ao sol, numa ilha inimaginável de carvão vegetal. Deixo-vos com esses parágrafos de luz e ensaio que de certa forma salvaram-me da parvoíce deste descontentamento. Às vezes a simplicidade (quando acontece) é a melhor aspirina.







Fotos realizadas em Setembro de 2018



quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Cogumelos do Parque Florestal de Monsanto 2018


O maior organismo vivo a habitar o nosso planeta é o denominado cogumelo- do-mel (Armillaria ostoyae) com 3.8 km de comprimento que prolifera sob os solos do estado americano do Oregon. Em estudos efectuados recentemente ao genoma deste fungo, estima-se que tenha  incrivelmente 8 mil anos de idade.  Não apresentam esta generosa longevidade, nem extensão os cogumelos que surgem nos espaços verdes cidade de Lisboa, porém são de igual forma interessantes a combinação das suas cores e formas. Após as chuvadas que se fizeram sentir nos últimos dias, foi tempo de regressar ao Parque Florestal de Monsanto para registar algumas espécies do reino Fungi que por ali nos surpreendem a cada olhar.













quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Em busca da alvéola-amarela-oriental



Para evitar o trânsito caótico da A5, partimos às 06:45 para a Ponta da Erva com o intuito de registar a raridade destes primeiros dias de Dezembro. De seu nome alvéola-amarela-oriental (Motacilla tschutschensis), uma espécie nativa das longínquas latitudes da Mongólia, China e Rússia, e que estoicamente, realizou uma longa viagem para chegar até este cantinho à beira-mar ensolarado. Uma vez no local, e como tudo na vida, tivemos sorte e encontrámos a ave no meio de outras alvéolas-brancas; a voar descontraída entre talhões de terra lavrada. Aqui ficam alguns momentos:



Os saltos da alvéola-oriental









Depois ainda tivemos oportunidade de observar outros bichos que encantavam de deslumbre a paisagem Ribatejana.


Com a primeira luz do dia este esmerilhão permitiu uma aproximação razoável.





Já com avançar da manhã, o curioso chapim-de-mascarilha decidiu espreitar entre caniços para ver quem seriam aqueles que por ali passavam.





Na berma da estrada, escondido no meio da vegetação, este bútio-comum tinha acabado de caçar um lagostim vermelho do Luisiana uma autêntica praga para os arrozais.



Enquanto procurávamos a alvéola não resisti a fotografar a graciosidade do pernilongo na sua procura por alimento.



Uma raridade que não permitiu grandes aproximações, foram estes gansos-de-testa-branca que ao longe, na margem direita do canal, compunham o cenário da lezíria.



O fascínio dos bandos e a força da natureza, em contraponto com as cidades e a coexistência de diferentes dimensões.




as íbis e abstracção da cor 


Estas saídas têm mais piada quando juntamos amigos a este "passatempo" de paciência e procura, como tal, aqui deixo os meus agradecimentos ao Frade, ao Luís, ao Joel e claro ao Magnus Robb responsável pela fantástica descoberta.

Fotografias realizadas a 06 de Dezembro.

Geneta - video da libertação





Liberdade. O momento em que foi devolvida à liverdade a geneta na Serra da Arrábida.

A liberdade da geneta


Para mim, se existe uma palavra com significado maior - essa palavra é liberdade. Esta geneta foi encontrada debilitada nas proximidades de Lisboa, sendo tratada pelo Centro de Recuperação de Animais Silvestres em Monsanto, onde recuperou durante meses para depois ser devolvida à natureza onde pertence. 

Foi isso que aconteceu no passado dia 8 de Novembro na Serra da Arrábida. Por mais que o ser humano se esforce, não pudemos controlar todas as variáveis insondáveis da natureza e do destino; o preço a pagar pela liberdade, por vezes pode ser extremamente elevado. Aqui ficam os momentos felizes que devemos recordar. 




A geneta  (Genetta genetta) é um mamífero carnívoro de origem africana que ocorre de norte a sul de Portugal em zonas florestais de baixa altitude, com galerias rupícolas e cursos de água.  Dá preferência a árvores ocas onde permanece em repouso servindo a mesma como latrina. 




Na Europa até ao remoto século IX , a geneta desempenhava o papel de animal doméstico e caçador de ratos, sendo depois substituída nessas funções pelo gato.


quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Livro do Desassossego 2º parte - Fernando Pessoa / Bernardo Soares




E assim dei por terminada a leitura destas páginas que me inquietaram durante mais de um ano. Debaixo do braço ou na mochila, transportei o Livro do Desassossego para os locais mais insuspeitos desde igrejas, praias, metropolitano, comboio, jardins, florestas, ruas e outros sítios dos quais não me lembro da etiqueta. Por sua vez, o livro transportou-me para as dimensões da rua dos Douradores e para os desconcertantes universos de Pessoa. Acompanhou os meus diversos estados de espírito e as minhas paranoias. Sussurrou-me quedas e abismos. Segredou-me novenas e prosas. Inspirou-me tantas vezes, fez-me sentir como se tivesse uma gelatina nas mãos a derreter a minha impaciência. Obrigou-me a reler um parágrafo que me fazia cocegas no colo da língua por não o compreender (daqueles que dão luta e nos arrastam em horas incomensuráveis). Não me lembro do peso do livro, mas recordo as dores de não o ler, por não ter tempo para esses luxos ou por haver outras tentações a satisfazer. Tantas outras vezes derreado, esta obra deixou-me em nenhures, contemplativo e seco, sem inspiração alguma. Recordo-me de ter escrito parvoíces do género:

"nada me faz mais falta do que sentir a falta das páginas de alguém, digo isto na noite em que a lua tinge-se de vermelho em adiamento planetário"

Em frente. Nesta segunda parte do Livro do Desassossego encontrei outras vozes e outros ecos de várias personas Pessoanas. Agora que reúno as frases que me assaltaram e me causaram estremecimento d´alma, retenho-me em outros momentos de desinquietante beleza, que bem podiam fazer parte de uma outra compilação de frases que se devem saborear antes de morrer.  Neste longo documento coligi as minhas escolhas e as páginas onde se encontram. Cada vez mais incompleto de mim, um dia hei-de voltar a desfolhar este livro e quem sabe, tentar entrar neste incompleto multiverso.

Até lá... Descubram-se.



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O cansaço que trago comigo de um viagem até Cascais é como se fosse o de ter nesse pouco tempo, percorrido as paisagens  de campo e cidade de quatro ou cinco países.

pág 246

A alma humana é um manicómio de caricaturas.

pág 248

Toda a vida é um sonho.

pág 259

Quando vejo um gato ao sol lembro-me de um homem ao sol.

pág 263

A solidão desola-me; a companhia oprime-me.

pág 267

A liberdade é a possibilidade do isolamento.

pág 268

Querer ir morrer a Pequim e não poder é das coisas que pesam sobre mim como a ideia de um cataclismo próximo.

pág 269

Durmo quando sonho o que não há: vou despertar quando sonho o que pode haver.

pág 270


Manufacturamos realidades. A matéria-prima continua sendo a mesma, mas a forma, que a arte lhe deu, afasta-a efectivamente de continuar sendo a mesma. Uma mesa de pinho é pinho, mas também é mesa. Sentamo-nos à mesa e não ao pinho. O amor é um instinto sexual, porém não amamos com o instinto sexual, mas com com a pressuposição de outro sentimento.

pág 277

24-3-1929 Haja ou não deuses, deles somos servos.

pág 284

E na mesa do meu quarto obscuro, reles, empregado e anónimo, escrevo palavras como a salvação da alma e douro-me do poente impossível dos pináculos altos...

pág 281

Quem nunca saiu de Lisboa viaja ao infinito no carro até Benfica, e, se um dia vai a Sintra, sente que viajou até Marte.
(...)
Um homem pode, se tiver verdadeira sabedoria, gozar o espectaculo inteiro do mundo numa cadeira, sem saber ler, sem falar com alguém, só com o uso dos sentidos e a alma não saber ser triste.


pág 291

Há um grande cansaço na alma do meu coração. Entristece-me quem eu nunca fui, e não sei que espécie de saudades é a lembrança que tenho dele.

pág 297

Ser compreendido é prostituir-se

pág 317


Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervalo que há entre mim e mim?

pág 329

Devo ao ser guarda-livros grande parte do que posso sentir e pensar como a negação e a fuga do cargo.

pág  335


Um hálito de música ou de sonho, qualquer coisa que faça quase sentir, qualquer coisa que faça pensar.

Quem sou eu para mim? Só uma sensação minha.

pág 340

5.4.1930 O sócio capitalista aqui da firam, sempre doente em parte incerta, quis, não sei por que
capricho de que intervalo de doença, ter um retrato do conjunto do pessoal do escritório. E assim, antes de ontem alinhámos todos, por indicação do fotógrafo alegre, contra a barreira branco sujo que divide, com madeira frágil, o escritório geral do gabinete do patrão Vasques.

pág 341

Pareço um jesuíta fruste. A minha cara magra e inespressiva nem tem inteligência, nem intensidade, nem qualquer coisa, seja o que for, que a alce da maré morta de outras caras.

pág 342


Se eu for atropelado por uma bicicleta de criança, essa bicicleta de criança torna-se parte da minha história.

pág  361

Baste-nos, se pensarmos, a incompreensibilidade do universo: querer compreendê-lo é ser menos que homens, porque ser homem é saber que se não compreende.

pág  362

Não é isto, porém, que sinto e me dói é que não valeu a pena fazê-lo, e que o tempo que perdi no que fiz, o não ganhei senão na ilusão, agora desfeita, de ter valido a pena fazê-lo.

pág 357

Às amantes impossíveis é também impossível o sorriso falso, o dolo do carinho, a astúcia das carícias. Nunca nos abandonam, nem de qualquer modo nos cessam.

São sempre cataclismos do cosmos as grandes angústias da nossa alma.

Sentir-se superior e ver-se tratado pelo Destino como inferior aos ínfimos - quem pode vangloriar-se de estar homem em tal situação.

pág 363

Viver é ser outro

(...) Esta madrugada é a primeira do mundo (...)

pág 366

Somos quem não somos e a vida é pronta e triste.


pág 367

Que humano era o toque metálico dos eléctricos! Que paisagem alegre a simples chuva na rua ressuscitada do abismo.
Oh, Lisboa, meu lar!

pág 368


Nunca deixei, creio, de ser ajudante de guarda-livros de um armazém de fazendas. Desejo, com uma sinceridade que é feroz, não passar nunca de guarda-livros.

pág 369

Tenho mais um sono íntimo do que cabe em mim. E não quero nada, não prefiro nada, não há nada a que fugir,

pág 370


Sou navegador num desconhecimento de mim. Venci tudo onde nunca estive.

pág 376

Nunca amamos alguém. Amamos, tão somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso - em suma, é a nós mesmos  - que amamos.

pág 377


Toda a literatura consiste num esforço para tornar a vida real... (...) a vida é absolutamente irreal na sua realidade directa: os campos, as cidades, as ideias são coisas absolutamente fictícias, filhas da nossa complexa sensação de nós mesmos.

pág 378

Não sou sincero por sinceridade artística.

pág 379


Alguns têm na vida um grande sonho e faltam a esse sonho. Outros não têm na vida nenhum sonho, e faltam a esse sonho também.

pág 384

Não posso ser nada nem tudo: sou a ponte de passagem entre o que não tenho e o que não quero.

 pág 386


Só não há tédio nas paisagens que não existem, nos livros que nunca lerei. A vida, para mim, é uma sonoçência que não chega ao cérebro. Esse conservo eu livre para que nele possa ser triste.

pág 401


Não pedi à vida senão que ela me não pedisse nada.

pág 408

Talvez o meu destino seja eternamente ser guarda-livros, e a poesia ou a literatura uma borboleta que, pousando-me na cabeça, me torne tanto mais rídiculo quando maior for a sua beleza.


pág 411

Quantas coisas, que temos por certas ou justas, não são mais que vestígios dos nossos sonhos, o sonambulismo da nossa incompreensão!

pág 413

Antes que o estio cesse e chegue o outono, no cálido intervalo em que o pesa e as cores abrandam, as tardes costumam usar um traje sensível de gloríola falsa

pág 414

O génio, o crime e a loucura provém, por igual, de uma anormalidade, representam, de diferentes maneiras, uma inadaptação ao meio.

pág 430

3.9.1931

Os sentimentos que mais doem, as emoções que mais pungem, são os que são absurdos.

pág 418

Todos os deuses morrem de uma morte maior que a morte.

pág 419

Ah, quem me salvará de existir? Não é a morte que quero, nem a vida: é aquela outra coisa que brilha no fundo da ânsia como um diamante possível numa cova a que se não pode descer. 

pág 437 

É toda a falta de um Deus verdadeiro que é o cadáver vácuo do céu alto e da alma fechada. Cárcere infinito - porque és infinito, não se pode fugir de ti.

pág 437

16.9.1931 Fluído, o abandono do dia finda entre púrpuras exaustas.

pág 424

Tenho nome entre os que tardam, e esse nome é sombra como tudo.

pág 425

Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente.

pág 439


Não tenho sentimento nenhum político ou social. tenho, porém,  num sentido, um alto sentido patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa.

pág 440

Durmo e desdurmo. Do outro lado de mim, lá para trás de onde jazo, o silêncio da casa toca no infinito.


pág 444

1.12.1931 A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmo, propondo-lhes a nossa personalidade especial para libertação.

pág 449

A arte mente porque é social... Fingir é amar... Mas o estadista que nos compra amou ao menos o comprar-nos; e a prostituta, a quem compremos, amou ao menos o comprar-mo-la.


pág 450

Minha alma é um maelstrom negro, vasta vertigem à roda do vácuo, movimento de um Oceano infinito em torno de um buraco de nada, e nas águas, que são mais giro que águas, bóiam todas as imagens do que vi e ouvi no mundo - vão casas, caras, livros, caixotes, rastros de música e sílabas de vozes, num rodopio sinistro e sem fundo.

pág 451


Não choro a perda da minha infância; choro que tudo, e nele a (minha) infância, se perca. É a fuga abstracta do tempo...

pág 453

Nada ia ainda morrer, mas tudo, como que num sorriso que ainda faltava, se virava em saudade para o mundo

pág 464

O outono que tenho é o que perdi. Tudo me para parece antecipadamente fruste. Doem-me a cabeça e o universo.

pág 465

Sou a sombra de mim mesmo à procura do que é a sombra.

pág 469

O mundo exterior existe como um actor num palco: está la, mas é outra coisa

pág 475

Sim, um momento fui outro; vi, vivi em outrem, essa alegria humilde e humana de existir como animal em mangas de camisa.

pág 483

Douro-me de poentes supostos, mas o suposto é vivo na suposição.

pág 486

Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de enganar a vida.

pág 493

Ofende-me o entendimento que um homem seja capaz de dominar o Diabo e não seja capar de dominar a língua aportuguesa,

Se um homem escreve em enquanto está bêbado, dir-lhe-ei: embebede-se. E se ele me disse que o seu fígado sofre com isso, responderei: o que é o fígado.

pág 494

Para ser sonhador falta-me dinheiro.

Mas, enfim, também há o universo da Rua dos Douradores. Também aqui Deus concede que não falte o enigma de viver

pág 500

Cada um de nós é vários, é muitos, é uma prolixidade de si mesmos.
Na vasta colónia do nosso ser há gente muitas espécies, pensando e sentindo diferentemente.
Penso às vezes que nunca sairei da Rua dos Douradores. E isto escrito, então parece-me uma eternidade.

pág 501

A nossa imaginação do impossível  não é porventura própria, pois já vi gatos a olhar para a lua e não sei se não a quereriam.

pág 503

Este livro é  a minha cobardia.
Para mim escreve é desperzar-me; mas não posse deixar de escrever. Escrever é como a droga que repugno e tomo, o vício que desprezo e em que vivo

pág 504


Que bom estar só largamente! Poder falar alto connosco, passear sem estorvo de vistas, repousar para trás num devaneio sem chamamento!

Os ruídos são todos alheios, como se pertencessem a universo próximo mas independente. somos finalmente, reis.

pág 505

Só os mortos sabem ensinar as verdadeiras regras de viver.

pág 508

Cai leve, suave, indefinida palidez lúcida e azul de tarde aquática - leve, suave, triste sobre a terra simples e fria. Cai leve, cinza invisível, monotonia magoada, tédio sem torpor.


pág 509

Foi génio mais que nos sonhos e menos que na vida. A minha tragédia é esta.

pág 510

O tédio dos grandes esforçados é o pior de todos.

pág 513

Toda a paisagem não está em parte nenhuma.

pág 518

O cauteleiro coxo que me maçava  inutilmente?  O velhote redondo e corado do charuto à porta da tabacaria? O dono pálido da tabacaria? O que é feito de todos eles, que, porque os vi e os tornei a ver, foram parte da minha vida? Amanhã também eu - a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim -, sim. amanhã também eu me sumirei da da rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu - a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim -, sim, amanhã eu também serei o que deixou passar nestas ruas, o que os outros vagamente evocarão com um « o que será dele?».  E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade e ruas de uma cidade qualquer.

pág 522

Nada mais.. . De tanto lidar com sombras, eu mesmo me converti numa sombra.

Mais nada... Um pouco de sol, um pouco de brisa, umas árvores que emolduram a distância, o desejo de ser feliz, a mágoa de os dias passarem, a ciência sempre incerta e a verdade sempre por descobrir. Mais nada, mais nada... Sim, mais nada...

pág 523





domingo, 11 de novembro de 2018

A Raiva ou um retrato social






Estávamos em 1950 e para comer havia apenas uma sopa de água e um dente de alho ou um pão para quatro, era assim que a fome raiava em Portugal e o vento suão conduzia ao suicídio silencioso. Os meus pais já me tinham falado da pobreza destes anos, mas foi como um murro no estômago que fui confrontado com esta imagem de um país enlutado e com as enormes desigualdades sociais da época (ainda hoje). Portugal caminhava de costas estupidamente voltadas para o mundo, orgulhosamente sós, onde os ricos morriam ricos (não é que lhes valesse de muito) e os pobres pouco ou nada tinham para além da morte certa.
 O Alentejo é retratado no filme de Sérgio Tréfaut como um deserto vigiado por sobreiros desolados e planícies sombrias, onde para sobreviver ao desemprego o contrabando era uma hipótese. Por outro lado, a revolta dos trabalhadores contra o poder dos senhores das grandes terras e da influência que tinham sobre a justiça e religião, catapultou este filme para um quase-western lusitano. O recorte dramático da fotografia a preto e branco é de um esplendor poético tornando por vezes desnecessária a palavra. As interpretações enaltecem a carga dramática do argumento, conferindo aos rostos e às suas sombras uma beleza heróica. Por sua vez, a banda sonora é composta pelo intemporal e distinto cante alentejano. Esta é uma história que não resultava a cores; porque é uma narrativa negra como a fome ou como o triste fado de um menino que perdeu a sua mãe. Assim foi Portugal. 


"Os pobres nascem pobres e os ricos nascem ricos"


A Raiva, um filme de Sérgio Tréfaut | 2017, 85´, ficção 

Adaptação de «Seara de Vento», de Manuel da Fonseca.

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

No bolso da tempestade





ouço o murmurar das pedras envoltas nas cordas de mar,
o corpo das ondas de azul escuro agiganta-se em fúria, 
o silvo do vento - sempre o vento - compõe a orquestração
ao arrancar toldos e telhados dos bares da encosta tardia.

as casas da praia improvisam trincheiras de última hora,
em contagem decrescente - o gritar da bandeira vermelha  
enquanto um casal discute o tamanho da última vaga,
no divórcio de marés e na partilha dos filhos náufragos.

lá em baixo, depois do desarrumo do areal,
um formigueiro de surfistas desafia o tear da ondulação,
ao domar a ira das águas de músculo montanhoso,
sem medo algum das escancaradas gargantas de Neptuno.

da pele atlântica fogem barcos que um dia serão fantasmas como tu,
na curva do Mónaco, espectrais vaga-lumes e automobilistas,
tentam a ultrapassagem vitoriosa da ultima sombra;
no passeio marítimo a rebentação desafia o herói a fazer o seu auto-retrato.

na marginal, aqui e ali a morte é uma amiga solteira,
com quem se vai praticando a solidão das tardes sem fundo;
de quando em vez ouvem-se os ecos dos estilhaços de céu,
pergunto-me:como se foge ao baptismo de uma tempestade?




sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Filme o Gavião de Monsanto


A medida do tempo e da felicidade são sempre aspetos tangíveis a uma determinada realidade - a nossa perceção do aqui e agora começa sempre depois de termos sido felizes. Foram precisas algumas horas para filmar um minuto. Sem incomodar as rotinas dos bichos, o abrigo fotográfico foi instalado a uma distância considerável do ninho. Depois foi esperar em silêncio até que as aves se mostrassem. O chamamento dos progenitores era perfeitamente audível, incitando o gavião juvenil a sair do ninho para depois voltar cada vez mais confiante das prospeções que efetuara. Sempre com o olhar atento dos pais, assim foram ministradas lições de reconhecimento e caça pelas redondezas, em voos rápidos, furtivos, dignas de uma nobre ave de rapina.

Já a noite se desfizera em promessas e eu ainda estava no abrigo sem precisar de palavras ou outras mundanas tentações, servia-me de alimento a melodia do vento. A natureza tudo pode e eu humildemnte agradeci o privilégio por estes momentos únicos. 

O que se vê neste vídeo é sempre pouco.



quarta-feira, 17 de outubro de 2018

4 Estações sobre Monsanto e o papa-moscas-cinzento



O papa-moscas-cinzento (Muscicapa striata) é uma pequena ave migratória que durante a sua passagem outonal visita o nosso país entre Agosto e Novembro. Também conhecido por taralhão-cinzento este pequeno insectívoro apresenta um curioso comportamento ao poisar num ramo, perto do solo, e dai lançar-se em voos até capturar um insecto, para depois voltar a esse mesmo poiso inicial, repetindo esta manobra até que a fome dure e os insectos também. Foi esse comportamento que registámos no Parque Florestal de Monsanto, mas no caso, esta pequena ave não fez jus ao nome e debicou a preceito uma desafortunada vespa.

Projecto 4 Estações sobre Monsanto e o papa-moscas-cinzento.






quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Costa Rica - Parque Nacional Manuel Antonio - 8º Episódio

Ao 8 episódio iremos descobrir as surpresas do parque nacional Manuel António com um guia local.  Passaremos pelas fantásticas praias do Pacífico, onde iremos ter um encontro inesperado com um raro felino.


terça-feira, 2 de outubro de 2018

Costa Rica - Batsu Garden - 7º episodio

Sejam bem-vindos ao Batsu Garden em San Gerardo de Dota! Este foi um dos melhores locais para fotografar aves na Costa Rica. Um pequeno jardim onde os colibris pousavam em todo o lado, num alegre festival de cor.


segunda-feira, 1 de outubro de 2018

4 Estações sobre Monsanto e o papa-moscas-preto





Podemos encontrar o papa-moscas-preto (Ficedula hypoleuca) no Parque Florestal de Monsanto durante a sua passagem outonal, que ocorre entre Agosto e Outubro. Proveniente do norte e centro da Europa, esta ave migradora distribui-se de forma alargada no nosso país, dando preferência a terrenos com vegetação arbustiva. E como não podia deixar de ser, lá está ele a espreitar, atento e curioso, a sacudir a asa, de certa forma, a informar-nos que o outono chegou, não fossemos nós esquecermo-nos.






Costa Rica - Playa Tortuga - 6º Episódio

Neste episódio visitámos as praias do Pacífico onde filmámos o maior guarda-rios da América entre outros momentos de loucura.




sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Uma experiência de hidrohide

É sempre bom voltar aos locais que nos fazem sentir bem.  Foi com esse pensamento que saudámos o reencontro com o Alfonso da NaturAlqueva. Desta vez levámos mais um amigo connosco para se iniciar nestas lides de fotografar a partir de um hidrohide. Enquanto experiência fotográfica é algo que recomendo; pois torna-se visualmente gratificante a composição fotográfica tendo como ponto de partida a água e a aproximação aos bichos que com ela interagem. Temos ainda os reflexos que podem conferir uma dimensão diferente à imagem e se a isso juntarmos e os tons quentes da paisagem, poderemos obter alguns fundos com um nível de desfoque interessante.

Mas voltemos à nossa experiência. Passavam poucos minutos das cinco da tarde e os 44º convidavam a estar dentro de água e foi isso que fizemos. Mal chegámos não perdemos tempo, vestimos os fatos de mergulho e entrámos no pequeno lago conduzindo os hidrohides. Esta charca era do tamanho de um campo de futsal, tendo a particularidade de ser habitada por umas criaturas anfíbias, semelhantes a girinos, que nos beliscavam inofensivamente. Com água pela cintura, conduzimos o nosso abrigo, ambientando-nos ao local, desenhando a nossa procura pelas margens e foi aí que a acção se desenrolou. Não tivemos que esperar muito. Passados alguns instantes surgiram as primeiras aves a investigar a segurança das redondezas. As cotovias abriram as hostilidades e logo após bebericarem, esponjaram-se de bico aberto para suportaram tamanha canícula. Depois, na imensidão desértica das estepes, surgiram longos pescoços com cabeças tipo periscópio, assim se apresentava a graciosidade desconfiada das abetardas. Aproximaram-se com cautela, supostamente receosas das estruturas que nos serviam de esconderijo, mas a sede era tamanha que elas não resistiram àquele oásis. Estávamos completamente rendidos à beleza das abetardas, pessoalmente nunca tinha estado tão perto da ave mais pesada da Europa. A alta temperatura não dava tréguas e com avançar da tarde anteciparam-se outras surpresas. Perfeitamente camuflados pela paisagem, um casal de cortiçóis assomou-se lentamente da água. Tentei um ângulo mais favorável para registar o momento em que a gota ficou suspensa entre a sede e a paisagem e tive sorte. Entretanto, com o passar do tempo, a pequena charca enchia-se de bichos sedentos em torno do bebedouro comunitário. Quando menos se esperava, engalanado pela solenidade do mistério, apresentou-se o senhor alcaravão com os seus olhos vidrados num outro astro. O chegar da noite deixou o horizonte suspenso pelo arrebol e o adejar das criaturas esvoaçantes. Quanto a nós, comuns mortais armados em anfíbios coleccionadores de memórias, saímos da água a sorrir, felizes com o que fizemos do tempo.

Voltar & Volver!

Aqui ficam algumas fotos da nossa tarde no Oasis del Secano. 

Um casal de cortiçóis (Pterocles orientalis) avançava com cautela em direcção à água para saciarem a sede.










Depois veio o senhor mistérioso alcaravão (Burhinus oedicnemus), primeiro inspeccionou e depois bebeu.






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A pesada graciosidade das abetardas (Otis tarda) quase se fundia com a paisagem.





Prestes a tropeçar nas suas patas - o equilibrista pernilongo (Himantopus himantopus).



Maçarico-bique-bique (Tringa ochropus) tenta um malabarismo de uma só perna.


 O perna-verde (Tringa nebularia) decidiu molhar as patas e fez ele senão bem...


O pequeno borrelho-pequeno-de-coleira (Charadrius dubius) em passada militar. 


Surpreendida a menina cotovia-de-poupa (Galerida cristata)


O homem a tentar focar.


eram 3 hidrohides... onde está o outro?



Ali vai a vergonha do sol e a sua jura de amanhã acordar.



Uma panorâmica de um momento feliz.
























Agradecimentos:

Naturalqueva


ao 7º dia

Mãe, agora que me faltas, respiro numa busca espontânea a tua ausência de cristal quando resistias na leveza de uma pétala. Proc...