Uma vasta coleção de presépios, provenientes dos mais diversos cantos do
mundo e concebidos com os mais variados materiais alegravam os seus olhos.
Todos os anos elegia um conjunto de figurinhas para as festividades. No ano
passado, o presépio eleito foi esculpido em osso, muito bem elaborado, até
parecia que as estatuetas sorriam com as sombras. Todos os anos fazia pequenos
embrulhos para oferecer a quem já não os podia receber. Junto ao presépio ele
abria os presentes dirigidos aos mortos e rezava. Era uma forma de dar vida aos
vários nomes com que batizava a solidão.
Nos primeiros dias de dezembro, de manhã cedo, dirigia-se a uma quinta
abandonada onde enchia de musgo uma saca de serrapilheira. Ele sabia da
importância do musgo para reter a água e prevenir a erosão do solo. Porém, as
suas figuras do presépio precisavam de um local onde pudessem brilhar. Quando
encontrou uma mancha de musgo prometedora, esgadanhou o solo e em pazadas cegas
encheu a saca com grandes quantidades da plantinha verde, caruma, pinhas e tudo
o mais que coubesse na boca apressada da pá. Certificou-se que ninguém o tinha
visto e fugiu para casa. Fechou-se dentro de si e esperou pela sabedoria da
noite.
A sala estava preparada para receber as personagens do presépio. Não havia
lugar para uma árvore com uma estrela no topo, era um desperdício artificial de
tempo. Por isso, apressou-se a forrar a tijoleira com um plástico para depois
escolher e montar o cenário deste ano.
Foi buscar o musgo. Quando passava no corredor reparou em várias gotas que
insinuavam um trilho. Acendeu a luz da dispensa e os seus maxilares estalaram
de espanto. Tudo remexido, fora do lugar e da ordem das coisas. A saca estava
furada, o musgo derramado, juntamente com os embrulhos esventrados. A dispensa
fora violada. Aquele cheiro? A quem pertenceria aquelas gotas de urina?
Correu para a cozinha em busca de algo para imobilizar o intruso. O seu
canivete digno de qualquer alentejano não impunha respeito suficiente. A pá que
ainda continha restos de terra daria uma boa arma. Entrou na exígua dispensa e
com muito cuidado removeu todos os sacos que estavam no chão. Nada. Olhou para
as prateleiras que continham os presépios e os embrulhos e nisto ouviu um
esgadanhar animal. Tocou em todos os sacos para que o intruso se pusesse a
jeito de uma valente pazada. Silêncio.
Dirigiu-se ao seu quarto e retirou da escrivaninha uma lanterna com duas
funções. Desligou a luz e acendeu a primeira função da lanterna. Um círculo de
luz quente iluminou os seus passos. Depois ligou a segunda opção e um espectro
de luz ultravioleta fez brilhar as gotas de urina. Dentro da dispensa apontou o
feixe luminoso para as prateleiras. A caixa de presépio que continha a sagrada família dentro de uma rocha oca brilhava de azul-celeste. A caverna feita de
geodo mineral refletia o espectro ultravioleta, enquanto um pequeno
ouriço-cacheiro brincava de menino Jesus. Ele sorriu. A escolha estava feita.
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