E assim dei por terminada a leitura destas páginas que me inquietaram durante mais de um ano. Debaixo do braço ou na mochila, transportei o Livro do Desassossego para os locais mais insuspeitos desde igrejas, praias, metropolitano, comboio, jardins, florestas, ruas e outros sítios dos quais não me lembro da etiqueta. Por sua vez, o livro transportou-me para as dimensões da rua dos Douradores e para os desconcertantes universos de Pessoa. Acompanhou os meus diversos estados de espírito e as minhas paranoias. Sussurrou-me quedas e abismos. Segredou-me novenas e prosas. Inspirou-me tantas vezes, fez-me sentir como se tivesse uma gelatina nas mãos a derreter a minha impaciência. Obrigou-me a reler um parágrafo que me fazia cocegas no colo da língua por não o compreender (daqueles que dão luta e nos arrastam em horas incomensuráveis). Não me lembro do peso do livro, mas recordo as dores de não o ler, por não ter tempo para esses luxos ou por haver outras tentações a satisfazer. Tantas outras vezes derreado, esta obra deixou-me em nenhures, contemplativo e seco, sem inspiração alguma. Recordo-me de ter escrito parvoíces do género:
"nada me faz mais falta do que sentir a falta das páginas de alguém, digo isto na noite em que a lua tinge-se de vermelho em adiamento planetário"
Em frente. Nesta segunda parte do Livro do Desassossego encontrei outras vozes e outros ecos de várias personas Pessoanas. Agora que reúno as frases que me assaltaram e me causaram estremecimento d´alma, retenho-me em outros momentos de desinquietante beleza, que bem podiam fazer parte de uma outra compilação de frases que se devem saborear antes de morrer. Neste longo documento coligi as minhas escolhas e as páginas onde se encontram. Cada vez mais incompleto de mim, um dia hei-de voltar a desfolhar este livro e quem sabe, tentar entrar neste incompleto multiverso.
Até lá... Descubram-se.
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O cansaço que trago comigo de um viagem até Cascais é como se fosse o de ter nesse pouco tempo, percorrido as paisagens de campo e cidade de quatro ou cinco países.
pág 246
A alma humana é um manicómio de caricaturas.
pág 248
Toda a vida é um sonho.
pág 259
Quando vejo um gato ao sol lembro-me de um homem ao sol.
pág 263
A solidão desola-me; a companhia oprime-me.
pág 267
A liberdade é a possibilidade do isolamento.
pág 268
Querer ir morrer a Pequim e não poder é das coisas que pesam sobre mim como a ideia de um cataclismo próximo.
pág 269
Durmo quando sonho o que não há: vou despertar quando sonho o que pode haver.
pág 270
Manufacturamos realidades. A matéria-prima continua sendo a mesma, mas a forma, que a arte lhe deu, afasta-a efectivamente de continuar sendo a mesma. Uma mesa de pinho é pinho, mas também é mesa. Sentamo-nos à mesa e não ao pinho. O amor é um instinto sexual, porém não amamos com o instinto sexual, mas com com a pressuposição de outro sentimento.
pág 277
24-3-1929 Haja ou não deuses, deles somos servos.
pág 284
E na mesa do meu quarto obscuro, reles, empregado e anónimo, escrevo palavras como a salvação da alma e douro-me do poente impossível dos pináculos altos...
pág 281
Quem nunca saiu de Lisboa viaja ao infinito no carro até Benfica, e, se um dia vai a Sintra, sente que viajou até Marte.
(...)
Um homem pode, se tiver verdadeira sabedoria, gozar o espectaculo inteiro do mundo numa cadeira, sem saber ler, sem falar com alguém, só com o uso dos sentidos e a alma não saber ser triste.
pág 291
Há um grande cansaço na alma do meu coração. Entristece-me quem eu nunca fui, e não sei que espécie de saudades é a lembrança que tenho dele.
pág 297
Ser compreendido é prostituir-se
Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervalo que há entre mim e mim?
pág 329
Devo ao ser guarda-livros grande parte do que posso sentir e pensar como a negação e a fuga do cargo.
pág 335
Um hálito de música ou de sonho, qualquer coisa que faça quase sentir, qualquer coisa que faça pensar.
Quem sou eu para mim? Só uma sensação minha.
pág 340
5.4.1930 O sócio capitalista aqui da firam, sempre doente em parte incerta, quis, não sei por que
capricho de que intervalo de doença, ter um retrato do conjunto do pessoal do escritório. E assim, antes de ontem alinhámos todos, por indicação do fotógrafo alegre, contra a barreira branco sujo que divide, com madeira frágil, o escritório geral do gabinete do patrão Vasques.
pág 341
Pareço um jesuíta fruste. A minha cara magra e inespressiva nem tem inteligência, nem intensidade, nem qualquer coisa, seja o que for, que a alce da maré morta de outras caras.
pág 342
Se eu for atropelado por uma bicicleta de criança, essa bicicleta de criança torna-se parte da minha história.
pág 361
Baste-nos, se pensarmos, a incompreensibilidade do universo: querer compreendê-lo é ser menos que homens, porque ser homem é saber que se não compreende.
pág 362
Não é isto, porém, que sinto e me dói é que não valeu a pena fazê-lo, e que o tempo que perdi no que fiz, o não ganhei senão na ilusão, agora desfeita, de ter valido a pena fazê-lo.
pág 357
Às amantes impossíveis é também impossível o sorriso falso, o dolo do carinho, a astúcia das carícias. Nunca nos abandonam, nem de qualquer modo nos cessam.
São sempre cataclismos do cosmos as grandes angústias da nossa alma.
Sentir-se superior e ver-se tratado pelo Destino como inferior aos ínfimos - quem pode vangloriar-se de estar homem em tal situação.
pág 363
Viver é ser outro
(...) Esta madrugada é a primeira do mundo (...)
pág 366
Somos quem não somos e a vida é pronta e triste.
pág 367
Que humano era o toque metálico dos eléctricos! Que paisagem alegre a simples chuva na rua ressuscitada do abismo.
Oh, Lisboa, meu lar!
pág 368
Nunca deixei, creio, de ser ajudante de guarda-livros de um armazém de fazendas. Desejo, com uma sinceridade que é feroz, não passar nunca de guarda-livros.
pág 369
Tenho mais um sono íntimo do que cabe em mim. E não quero nada, não prefiro nada, não há nada a que fugir,
pág 370
Sou navegador num desconhecimento de mim. Venci tudo onde nunca estive.
pág 376
Nunca amamos alguém. Amamos, tão somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso - em suma, é a nós mesmos - que amamos.
pág 377
Toda a literatura consiste num esforço para tornar a vida real... (...) a vida é absolutamente irreal na sua realidade directa: os campos, as cidades, as ideias são coisas absolutamente fictícias, filhas da nossa complexa sensação de nós mesmos.
pág 378
Não sou sincero por sinceridade artística.
pág 379
Alguns têm na vida um grande sonho e faltam a esse sonho. Outros não têm na vida nenhum sonho, e faltam a esse sonho também.
pág 384
Não posso ser nada nem tudo: sou a ponte de passagem entre o que não tenho e o que não quero.
pág 386
Só não há tédio nas paisagens que não existem, nos livros que nunca lerei. A vida, para mim, é uma sonoçência que não chega ao cérebro. Esse conservo eu livre para que nele possa ser triste.
pág 401
Não pedi à vida senão que ela me não pedisse nada.
pág 408
Talvez o meu destino seja eternamente ser guarda-livros, e a poesia ou a literatura uma borboleta que, pousando-me na cabeça, me torne tanto mais rídiculo quando maior for a sua beleza.
pág 411
Quantas coisas, que temos por certas ou justas, não são mais que vestígios dos nossos sonhos, o sonambulismo da nossa incompreensão!
pág 413
Antes que o estio cesse e chegue o outono, no cálido intervalo em que o pesa e as cores abrandam, as tardes costumam usar um traje sensível de gloríola falsa
pág 414
O génio, o crime e a loucura provém, por igual, de uma anormalidade, representam, de diferentes maneiras, uma inadaptação ao meio.
pág 430
3.9.1931
Os sentimentos que mais doem, as emoções que mais pungem, são os que são absurdos.
pág 418
Todos os deuses morrem de uma morte maior que a morte.
pág 419
Ah, quem me salvará de existir? Não é a morte que quero, nem a vida: é aquela outra coisa que brilha no fundo da ânsia como um diamante possível numa cova a que se não pode descer.
pág 437
É toda a falta de um Deus verdadeiro que é o cadáver vácuo do céu alto e da alma fechada. Cárcere infinito - porque és infinito, não se pode fugir de ti.
pág 437
16.9.1931 Fluído, o abandono do dia finda entre púrpuras exaustas.
pág 424
Tenho nome entre os que tardam, e esse nome é sombra como tudo.
pág 425
Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente.
pág 439
Não tenho sentimento nenhum político ou social. tenho, porém, num sentido, um alto sentido patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa.
Durmo e desdurmo. Do outro lado de mim, lá para trás de onde jazo, o silêncio da casa toca no infinito.
pág 444
1.12.1931 A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmo, propondo-lhes a nossa personalidade especial para libertação.
pág 449
A arte mente porque é social... Fingir é amar... Mas o estadista que nos compra amou ao menos o comprar-nos; e a prostituta, a quem compremos, amou ao menos o comprar-mo-la.
pág 450
Minha alma é um maelstrom negro, vasta vertigem à roda do vácuo, movimento de um Oceano infinito em torno de um buraco de nada, e nas águas, que são mais giro que águas, bóiam todas as imagens do que vi e ouvi no mundo - vão casas, caras, livros, caixotes, rastros de música e sílabas de vozes, num rodopio sinistro e sem fundo.
pág 451
Não choro a perda da minha infância; choro que tudo, e nele a (minha) infância, se perca. É a fuga abstracta do tempo...
pág 453
Nada ia ainda morrer, mas tudo, como que num sorriso que ainda faltava, se virava em saudade para o mundo
pág 464
O outono que tenho é o que perdi. Tudo me para parece antecipadamente fruste. Doem-me a cabeça e o universo.
pág 465
Sou a sombra de mim mesmo à procura do que é a sombra.
pág 469
O mundo exterior existe como um actor num palco: está la, mas é outra coisa
pág 475
Sim, um momento fui outro; vi, vivi em outrem, essa alegria humilde e humana de existir como animal em mangas de camisa.
pág 483
Douro-me de poentes supostos, mas o suposto é vivo na suposição.
pág 486
Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de enganar a vida.
pág 493
Ofende-me o entendimento que um homem seja capaz de dominar o Diabo e não seja capar de dominar a língua aportuguesa,
Se um homem escreve em enquanto está bêbado, dir-lhe-ei: embebede-se. E se ele me disse que o seu fígado sofre com isso, responderei: o que é o fígado.
pág 494
Para ser sonhador falta-me dinheiro.
Mas, enfim, também há o universo da Rua dos Douradores. Também aqui Deus concede que não falte o enigma de viver
pág 500
Cada um de nós é vários, é muitos, é uma prolixidade de si mesmos.
Na vasta colónia do nosso ser há gente muitas espécies, pensando e sentindo diferentemente.
Penso às vezes que nunca sairei da Rua dos Douradores. E isto escrito, então parece-me uma eternidade.
pág 501
A nossa imaginação do impossível não é porventura própria, pois já vi gatos a olhar para a lua e não sei se não a quereriam.
pág 503
Este livro é a minha cobardia.
Para mim escreve é desperzar-me; mas não posse deixar de escrever. Escrever é como a droga que repugno e tomo, o vício que desprezo e em que vivo
pág 504
Que bom estar só largamente! Poder falar alto connosco, passear sem estorvo de vistas, repousar para trás num devaneio sem chamamento!
Os ruídos são todos alheios, como se pertencessem a universo próximo mas independente. somos finalmente, reis.
pág 505
Só os mortos sabem ensinar as verdadeiras regras de viver.
pág 508
Cai leve, suave, indefinida palidez lúcida e azul de tarde aquática - leve, suave, triste sobre a terra simples e fria. Cai leve, cinza invisível, monotonia magoada, tédio sem torpor.
pág 509
Foi génio mais que nos sonhos e menos que na vida. A minha tragédia é esta.
pág 510
O tédio dos grandes esforçados é o pior de todos.
pág 513
Toda a paisagem não está em parte nenhuma.
pág 518
O cauteleiro coxo que me maçava inutilmente? O velhote redondo e corado do charuto à porta da tabacaria? O dono pálido da tabacaria? O que é feito de todos eles, que, porque os vi e os tornei a ver, foram parte da minha vida? Amanhã também eu - a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim -, sim. amanhã também eu me sumirei da da rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu - a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim -, sim, amanhã eu também serei o que deixou passar nestas ruas, o que os outros vagamente evocarão com um « o que será dele?». E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade e ruas de uma cidade qualquer.
pág 522
Nada mais.. . De tanto lidar com sombras, eu mesmo me converti numa sombra.
Mais nada... Um pouco de sol, um pouco de brisa, umas árvores que emolduram a distância, o desejo de ser feliz, a mágoa de os dias passarem, a ciência sempre incerta e a verdade sempre por descobrir. Mais nada, mais nada... Sim, mais nada...
pág 523
Nada mais.. . De tanto lidar com sombras, eu mesmo me converti numa sombra.
Mais nada... Um pouco de sol, um pouco de brisa, umas árvores que emolduram a distância, o desejo de ser feliz, a mágoa de os dias passarem, a ciência sempre incerta e a verdade sempre por descobrir. Mais nada, mais nada... Sim, mais nada...
pág 523
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