O nevoeiro dissipou-se e depois de várias horas pelas desertas estradas escandinavas, à nossa frente anunciava-se um casario vermelho digno de um romance policial. Por todo o lado altos blocos de neve aguardavam pelo aumento da temperatura para o inevitável degelo. Na estrada de terra batida que dividia a floresta de bétulas espreitavam gnomos imaginários e outros de madeira que indicavam que tínhamos chegado ao nosso destino. Um casa ampla ladeada por árvores e um maravilhoso lago gelado. Os nossos anfitriões, um casal finlandês bastante amistoso, falou-no das curiosidades locais e dos bichos que poderíamos encontrar como lobos e corujas, povoando o nosso imaginário imediato de esperança. Convidaram-nos a usar a sauna mas essa experiência foi adiada, uma vez que o tempo era escasso e o chamamento pelos bosques era imenso.
Da casa em Kussamo recordo o chão aquecido, espaço arejado, o vestíbulo onde éramos obrigados a deixar os sapatos e a misteriosa sauna. Foi dos donos da casa que recebemos um presente, tratava-se de um púcaro de madeira, do qual podíamos beber água de qualquer curso de água das redondezas. Este casal de finlandeses eram louros, altos e grandes e de sorriso fácil, o que deita por terra a teoria de que este povo nórdico é sisudo - nem todos.
Durante 3 dias percorremos os arredores em busca de bichos que tínhamos em mente, todavia a paisagem gelada despertava-me os sentidos para a magia do sol da meia noite. Era inevitável encontrar na candura da paisagem uma fonte de inspiração, na qual os escritores escandinavos recorriam com manchas de sangue a contrastar na neve nívea e imaculada. Os recortes de luz e os seus reflexos….
As nuvens e as árvores assistem pacientemente ao degelo
Aqui fica Kuusamo no mapa.
Noutro lago a camada de gelo é ainda muito espessa, convidaram-nos a andar por ali mas…
Os meus passos na neve murmuram um certo desnorte, enquanto as árvores contemplam os raios de sol branco.
Nestes lagos vivos oiço rumores das coisas ditas pela brancura algures manchadas de sangue num imaginário policial.
Se olhares para o céu... resta o interminável eco ao adejar do último cisne-branco.
Brancas populações de árvores pareciam caminhar em direção às estradas. Destes trilhos restava o nada que alimenta a pedra. Sem gente, carros ou outro equivoco civilizacional, não sabíamos se o mundo acabou, ou estaria para findar num logaritmo tão saboroso quanto ignorante. Felizes às vezes… acelerávamos para dentro nós próprios - relógio ainda vivo,
De curva em curva os caminhos faziam-se por terra batida.
De repente o cenário muda e somos hipnotizados pela neblina. Num último suspiro, uma venda branca desce sobre o corpo de neve. Até os pássaros respeitam o silêncio e a queda do momento. Tudo agora é outro.
Os pormenores humanos dos líquenes que se apoderavam do tapete de musgo, como trompas que beijam e sentem o cheiro do medo natural de estar vivo.
Os rebentos vegetais rasgam a farsa do nocturno despertar.
Abandono a sombra de algumas palavras e num registo mais cientifico volto a Kussamo e às suas aves. Um casal de mergansos-pequenos (Mergellus albellus) nadava calmamente num pequeno lago, fazendo as delícias de vários fotógrafos que tal como nós, sorvíamos o momento.
À beira da estrada uma fêmea de galo-tetraz (Tetrao urogallus) acompanhou o lento movimento do carro sem medo algum.
Para depois esconder-se, mimetizando-se por entre a vegetação.
Inesquecível será o som de gladiador do galo-montês (Tetrao urogallus), a ecoar pelos lagos gelados antes de uma luta de machos. Depois, todos os intervalos de silêncio são pormenores que nos fazem lembrar que ocupamos uma parcela ínfima numa casa que não deseja ser incomodada.
De pose triunfal, sem medo de quem o contempla com admiração, ele segue a sua marcha em direção a uma outra arena para que se repita o ritual. E a nossa luta será...
Saber o que fazer com estes dias brancos de memória fina.
O gaio-siberiano (Perisoreus infaustus) veio espreitar quem eram aqueles que agora chegavam ao seu parque de merendas. Foi assim que o encontrámos e foi daqui que ele nos viu.
Às vezes "perto" não significa "bem". De tão próximo que estava do gaio-siberiano, e na ânsia de conseguir um fotograma, esqueci-me do inicio e fim do enquadramento.
Um lago que pertencia aos cisnes-bravos (Cygnus cygnus) e nós respeitámos a sua vontade.
Houve alguns que não gostaram da nossa presença. Compreensível.
O mesmo se passou com os mergansos-grandes (Mergus merganser) que depressam voaram para outras paragens.
Por outro lado, o descanso imperturbável, em cima de uma árvore o tetraz-lira (Tetrao tetrix) permanecia imóvel ignorando os nossos chamamentos.
Em cima dos pinheiros o chapim-montês (Poecile montanus) cantava as suas glórias
Foi de fugida que conseguimos observar a escrevedeira-amarela (Emberiza citrinella)
Em Kuusamo, os picoteiros (Bombycilla garrulus) surgiam em bandos irrequietos de volta dos tenros rebentos das árvores. Sem dúvida, foi uma das aves que mais gostei de observar.
O ataque do bando às árvores inocentes.
Pensativo - Um registo de um picoteiro solitário.
Por todo o lado, os tordos-zornais (Turdus pilaris) ocupavam todo o tipo de habitats, raramente vimos tordo-comum.
Os tordos-ruivos (Turdus iliacus) andavam misturados com os zornais e em grande número, por vezes aconteceu não saber quem era quem.
O olho-dourado (Bucephala clangula) faziam parte da paisagem alva mas não permitiram grandes aproximações.
Onde estará a coruja-do-nabal?
No seu calmo vagar, este anfíbio atravessava a estrada, não havia trânsito que o amedrontasse, porém tivemos que tirar o bicho do meio da via, não fosse dar-se inicio a uma qualquer prova automobilística.
São 0:20 minutos em Kussamo e ainda há vestígios de um astro qualquer.
Por aqui gostava de escrever um romance policial sem um assassino, sem uma gota de sangue, um casario abandonado, uma sombra suspeita, ou o sol da meia-noite, apenas com as famintas criaturas que se alimentam dos longos nevões de Kussamo. Por certo não saberia o que fazer com o dia que sobrava da noite branca,
Agradecimentos:
Família Frade.
Sem comentários:
Enviar um comentário