quarta-feira, 18 de maio de 2016

Conto: Diário de um condomínio





Oiço o barulho de cordas a ranger...
E a sinfonia desafinada daquela maluca do quarto andar. Ela passa a manhã a martelar as teclas do piano, enquanto o namorado arma-se em atleta profissional  ao exercitar-se na varanda até ficar vermelho como um tomate. Depois, ao final da tarde, o pseudo-atleta exibe os músculos trabalhados, ao levar o cãozinho "reco" a passear mas o estúpido do animal urina pelos cantos da escadaria antes de chegar à rua. Bonito serviço. Para apagar as provas do crime canino, lá vem a minha vizinha lavar as escadas, enquanto repete palavras feias de esfregona na mão, a exibir o amplo decote, de calções curtos e rasgados, de anca esculpida, provocadoramente a insinuar-se. Uma pouca-vergonha. Todas as quartas-feiras, da parte da tarde, quando o namorado não está, ela recebe em casa um agente da autoridade. Pelos barulhos que fazem devem divertir-se muito. Não sei se me estou a fazer entender. Eu vejo o carro da polícia aqui parado à porta. Toda a vizinhança vê. O que devem as pessoas pensar mas ninguém diz nada. Até ao dia.

Elevador está avariado e eu estou farto de perder cabelo com histórias que não me dizem respeito. Não me recordo de pagar o condomínio, nem sei quando foi a última vez que fui à caixa de correio. A torneira do lavatório está sempre a pingar. Tenho humidade na casa de banho e fungos nas unhas dos pés. Estou numa fase que não me apetece ver ninguém.
Como disse... Não me recordo de pagar este semestre do condomínio. Tenho que mandar fazer uma segunda chave pois nunca se sabe quando perco esta. A administradora do prédio é aquela moça do quarto andar. Creio que trabalha por turnos numa empresa de segurança. Ela é muito bonita e toca lindamente piano. Tem um lindo cachorrinho e namora um homem alto que dizem que é atleta federado. Educadíssimo.

Acordo com gritos e portas a fecharem-se com estrondo. Oiço ganir. Espreito e vejo o cão da minha vizinha de garganta rasgada ainda a tentar ladrar. O bicho a esguichar sangue entre os pés das pessoas que doidas pedem ajuda. Saiu e tento não pisar o sangue que escorre pelos degraus. A descer as escadas vem o meu vizinho, um homem grande, de fato de treino largo, aos berros, desorientado. Desvio-me e deixo-o passar. Quase se cruzava com os bombeiros que subiam as escadas também à pressa, mais uma mulher polícia, bem jeitosa por sinal. Pela rua abaixo vejo o meu vizinho armado em atleta, corre tanto até que desaparece. Deve ir ter com a outra. Agora que o mal está feito. Pudera… Ela também andava metida com quem não devia. Um polícia ou uma agente da autoridade, não sei... Pelo menos não têm filhos. Nestas coisas as crianças são as que mais sofrem.

Oiço o barulho de cordas a ranger...
E a fala desconexa dos homens fardados a tentarem pegar num corpo pendurado no estendal da roupa. As janelas são iluminadas pelas luzes azuis urgentes das ambulâncias. Se me perguntarem alguma coisa… Bem, se me perguntarem se eu vi ou ouvi alguma coisa…. Não me recordo do nome da minha vizinha. Pelo que sei era boa pessoa e muito cuidadosa. Fechava sempre a porta do prédio. Morava aqui há tanto tempo. Agora reparo nas manchas nas paredes do hall de entrada do prédio. Por falar nisso, quem ficará com a pasta do condomínio?



Sem comentários:

Enviar um comentário

Raposa-orelhuda ou raposa-orelhas-de-morcego? Para mim raposa com orelhas de abano.

Ainda o sol  lavava o rosto com areia vermelha, já em Samburu, Quênia, o calor tornava-se impiedoso para todos os bichos. A sombra dos arbus...