domingo, 1 de fevereiro de 2015

Às vezes só




Percorria a avenida em busca de uma livraria
escolhia um livro que já tivesse lido
e corria para casa junto ao parapeito da janela
recordava aquela altura
em que as páginas não eram pesadas e os risos fáceis e lia
até que o horizonte fosse esquecimento fio de noite
e o gato a provocasse para uma última brincadeira
por fim juntos adormeciam sem frio.

Às vezes só e ela dizia: Tu também.

ia ao cinema onde adormecia com as vozes que nada lhe diziam,
guardava o bilhete que pendurava numa árvore pequenina
junto à mesa cabeceira,
onde os santinhos eram adornados pela queda da cal das paredes
ali coleccionava o tempo que regava todos as horas.

tomava uma aspirina com receio que as dores lhe pudessem gritar
o quanto estava viva,
e cortava os pés às flores que lhe ofereciam às escondidas no hospital
tinha mais medo de manhã do que à noitinha
e esperava que nada lhe doesse mais do que os pés.
praia, bairro, rua, caminhadas por entre assobios e palavras ditas à desgarrada,
nomes bonitos, nomes feios, lágrimas escondidas, sorrisos de crucifixo e ladaínhas.
nada importava porque ela continuava a somar dias aos anos e anos aos dias
por entre corredores e portas que deixavam escapar ecos de esperança.

Sempre só ela dizia: Nós também.





Setembro 2009

Sem comentários:

Enviar um comentário

Esgravatar

O húmus remexido pelos melros ilumina o rasto das centopeias maria-café  pelos escombros da terra húmida, aproveito para plantar dedos em sa...