um conflito ecoa nos patamares,
aproximo-me da porta e espreito pelo olho de boi
certifico-me que a luz da escada está apagada;
se hoje houvesse uma guerra mundial eu não estava preparado,
já os meus vizinhos sobreviveriam e pelo barulho que fazem
imagino-os em casa, em saltos magníficos, aos pulos e cambalhotas,
de pernas para o ar, num doido trampolim do chão ao tecto,
sem gravidade ou vergonha que os desminta de heróis.
os meus vizinhos são fortes
são os maiores candidatos a astronautas que conheço
colectores preparados para uma catástrofe,
eles guardam tesouros de conservas em lata
vestem roupas dramáticas,
e quando nos encontramos, por acaso,
usam palavras tão fechadas das quais tenho medo do significado,
semanalmente acartam para casa sacos cheios de resistência
acredito que tenho vizinhos que não dormem;
por detrás das cortinas esperam pelo inicio do conflito de arma pronta e alvo identificado.
agora...
pelas escadas os cães ladram sedentos de rua,
no rebate das portas ímpares as gatas miam num cio eléctrico,
à janela todos os meus vizinhos anunciam um fim qualquer.
um fim que não este.
um fim que nunca foi escrito;
todos estão em casa
e secretamente esperam por alguma coisa.
eu não estou preparado para o holocausto.
fecho o guarda-fatos e o armário onde colecciono restos
dos amores em algodão-doce e outras fotografias que me são familiares.
escavo por entre a desarrumação e escondo o boletim das vacinas e o B.I,
guardo os meus preciosos pertences, aqueles que ainda estão agarrados à pele e doem.
tenho saudades dos dias longos e das noites frias dos corpos.
não estou minimamente preparado,
estou em fuga que é algo completamente diferente.
por isso, tenho o meu ritual de iniciação para quando o dia chegar,
não haver dúvidas que o dia chegou...
ligo o cronometro:
direcciono os sapatos de guerra com a biqueira virada para a parede,
coloco as calças em cima da cadeira e a camisa por cima das calças,
e os boxers em cima da camisa com as meias pretas ao lado.
tenho um casaco resistente à chuva pendurado num cabide
luvas de amianto em cima da cama,
um capacete de mineiro com uma luz no topo, ligada,
uma garrafa de oxigénio e outra com água mineral ao meu lado,
dezenas de barras de cereais com diferentes sabores,
uma velhinha espingarda de fulminantes e uma mochila,
por fim, em torno do corpo, ato a bíblia e uma revista com senhoras ligeiramente despedidas
serve de fé como um colete à prova de bala e solidão.
não me esqueci;
deixei em cima do frigorífico um envelope
com as contas que paguei e com as que ficaram por pagar.
tal como a contabilidade dos meus erros,
está lá tudo escrito para depois ser mais fácil desculparem-me.
demorei 1 minuto e 57 segundos a preparar-me, não está mal.
ao mínimo sinal... visto-me e fujo.
calmamente, corro os estores para baixo e fecho a porta do quarto
silencio a luz do rádio que segreda baixinho na mesa de cabeceira
fico completamente às escuras, em mim,
manto apaziguador de uma calma mortalmente consentida.
descanso e espero que a consciência do mundo me apague.
mais tarde, numa enorme agitação, acordo com gritos
só pode ser uma coisa: o dia chegou. o grande holocausto está aí,
agarram-me pelos cabelos e pelas pernas,
fazem-me cócegas nos pés e beijam-me as faces rubras de sono
e quando mais a primavera se anuncia auspiciosa maior é desilusão;
aqueles vizinhos, que vivem aqui e nem sequer sei o nome,
dizem-me com o maior desplante: parabéns!
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