hoje tal como ontem e anteontem não tive visitas
(já não sei o que isso é)
não me queixo sempre tive medo das surpresas que desejava irreais
(é certo que ninguém vai aparecer)
também não recebi nenhuma correspondência
(não é Natal por isso a minha irmã não me vai escrever)
ainda bem...
detesto responder a cartas que não adiantam nada ao que está feito.
Quarenta e cinco quilos e olheiras matinais,
estou mais magricela mas em forma.
estou mais magricela mas em forma.
quem não emagrece dentro destas paredes ou dentro deste uniforme azul?
não reclamo.
gosto de me ver sem cabelo. a minha companheira de cela também gosta.
ela faz-me certos favores e eu retribuo com certos mimos,
não é assim que é la fora?
Há muitas mulheres da minha idade que davam tudo para ter o meu peso.
elas que venham passar à prisão uns tempinhos e vão ver como ficam no ponto;
sem estrias ou celulite, tudo no sítio, não prometo uma cinturinha de vespa,
mas garanto que ficam jeitosas.
Estou preparada para levar um dia igual a todos os outros.
como é normal tomei banho, fiz ginástica e avancei nos trabalhos manuais,
(dizem que o trabalho com as mãos faz bem à depressão)
o tapete de Arraiolos ( devia dizer tapeçaria de Caxias)
está quase pronto mais um ano e acabo.
está quase pronto mais um ano e acabo.
tenho tempo, muito tempo, não me posso queixar.
na verdade sinto-me melhor, cada vez melhor.
já lá vai o tempo de revolta e raiva.
tenho consciência que não devo vazar um olho às guardas prisionais,
não vai adiantar nada e quem perde sou eu. sempre foi assim.
De ti
lembro-me (não sei porque razão) daqueles tempos
em que te ajudava a arrombar o marco dos correios
para lermos a correspondência dos nossos vizinhos
tinha dezoito anos e tu vinte e um para aí...
recordo-me daqueles contentores vermelhos que ficavam no fim da nossa rua,
que nós desventrávamos assim num piscar de olhos.
depois fugíamos com as cartas roubadas
e em cima de uma rocha, na praia de Caxias, fazíamos amor
depois fugíamos com as cartas roubadas
e em cima de uma rocha, na praia de Caxias, fazíamos amor
por debaixo das estrelas com o ralhar do mar aos nossos pés,
e passávamos as horas mais longas que as horas sem tempo
a ler,
as cartas dos outros, as dores dos outros e as proximidades que nos afastam
não sei...
porque insistes que eu te receba nesta cela que desenhaste
num dia de destino tardio
para nós.
sei que hoje não vens atormentar-me com a tua sombra branca
de terapeuta da fala.
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