
São
esses tempos complicados que nos desafiam: necessitava de uma viagem para renovar horizontes,
desanuviar, gritar, arranhar a garganta, ver coisas que nunca vi, ganhar mundo.
Urgia sentir a descoberta para me manter atento, agarrado às surpresas do
amanhã. Fiz esta viagem de coração nas mãos, rezando para que em casa nada
faltasse e que tudo corresse bem durante a minha ausência. Realizei esta viagem
também pelo meu saudoso Pai e pelo seu gosto por "passarinhos".
Recordando o seu sorriso e as suas palavras "faz uma boa viagem e com
cuidado". Fui com amigos e por isso senti-me amparado, muitas vezes em
silêncio, outras em alegria efémera, camuflada, contudo fui capaz de brincar,
provocar, espernear - habitar o meu parvo eu.
Para mim a fotografia é a história que
fica por contar antes e depois da cortina da realidade de abrir e fechar. É o rasto que fica
antes e depois daquele instante capatado. É o outro momento que vive para além do
disparo do obturador. É a filigrana das conversas, os hiatos silenciosos, as
cumplicidades dos gestos e dos olhares. O mapa do engano, o preparativo do
consentimento em sucesso. É o falhanço que se glorifica por se ter tentado e
que tantas vezes é saboreado com um bom vinho. É a
azia de perder neste jogo de penas, a feijões, numa inútil competição. São
histórias de amizade e de finca-pé. É a vontade de guardar para sempre, algo
que já não volta.
Após isto, vamos então falar
destes fantásticos carpinteiros que eliminam insectos prejudicais às árvores,
os pica-paus!
Contratámos uma
empresa que desenvolve de forma muito bem organizada, saídas vocacionadas para
observação e fotografia de vida selvagem. O nosso objectivo era fotografar o pica-pau-preto.
Às 6:30 já estávamos no ponto de encontro, um hotel-restaurante de fachada
rústica, onde outros madrugadores também esperavam pelos seus guias.
Pontualidade e eis que chegava o nosso anfitrião. Entrámos no carro e volvidos
alguns minutos, fizemos uma pequena paragem para que o nosso guia fosse buscar
as larvas e formigas-carpinteiras. Chegámos ao local, pouco tempo depois.
Aguardava-nos uma clareira ladeada por grandes árvores e no centro, troncos de
árvores mortas onde foi inserido as formigas e as suas larvas como forma de
chamariz alimentar para os gulosos pica-paus. Tudo devidamente certificado como
sendo o alimento local destes bichos e nada que fugisse à dieta alimentar dos
pica-paus em concreto.
Pois bem, eram
dois abrigos de madeira com uma janela de vidro que passavam despercebidos por entre a
paisagem. Cada abrigo acomodava duas pessoas. Erámos quatro intrépidos
madrugadores que era necessário dividir pelos abrigos. Assim sendo, o nosso
guia fez uma questão, tipo jogo, mas num espanhol muito intricado e embrulhado. Olhou para o meu amigo Gaudêncio e disse qualquer coisa do tipo (desculpem a tradução para portunhol): "
"Hombre... escolhe um número, de um a dois!"
O dia ainda dava os seus primeiros passos, a neblina matinal fazia-se
sentir com um véu lento. Os olhos do Gaudêncio abriram-se para tentar melhor entender aquelas palavras
enubladas e hesitando, respondeu estoicamente:
"Três!"
O espanhol esqueceu-se que era espanhol, ficou pálido, de olhos esbugalhados, boca escancarada a contar os
dedos da mão, enquanto olhava para nós, com vontade de pregar valentes reguadas. Todavia
o nosso amigo emendou a aritmética e após um esgar de espanto e
atrapalhação:
"Dois, pá, dois!
Rimos de forma contida mas comprometidos com a situação, não
esperava pela demora umas valentes gargalhadas. A seu tempo!
Gaudêncio ficou no segundo abrigo e nós no primeiro. Com tudo isto, o nosso
amigo Gaudêncio ainda fez amizade e troncou ideias com um alemão que após fotografar o
torcicolo deu por encerrada a sessão fotográfica. Gaudêncio ficou sozinho
no seu abrigo, mas por certo ia passando o tempo com os pica-paus que por lá se
exibiam. enquanto eu e o meu amigo Deodato deliciávamo-nos em risos de escarnio
sobre esta estranha aritmética do nosso querido amigo.
O objetivo proposto foi alcançado: Pica-pau-preto
(Dryocopus martius) um dos
maiores pica-paus do mundo. Plumagem enigmática, de um negro abismal profundo, apresentando
uma coroa vermelha nos machos e apenas a parte superior da coroa avermelhada
nas fêmeas. As dimensões do pica-pau-preto podem chegar aos 55 centímetros de
comprimento e 84 centímetros de envergadura, pudendo pesar cerca de 400 gramas.
O seu olhar é hipnotizante como duas esferas amarelas que não se conseguem
parar de fitar. De voo incaracterístico, em relação ao outros pica-paus, o pica-pau-preto apresenta batidas compassadas e
leves, de cabeça erguida, fazendo entoar por vezes o seu grito de alerta áspero
e esganiçado.
Estes pica-paus-pretos
foram registados em Espanha. Contudo, podem ser encontrados em quase toda a Europa
(excepto Portugal, Grã-Bretanha e norte da Escandinávia) distribuindo-se o seu império até
à Asia. O seu estatuto de conservação é “pouco preocupante”
Uma dose de formiginhas apetitosas e o olhar quase de desprezo.
A coroa vermelha que resiste à cinza das memórias.
O casalinho a dançar em volta da árvore.
A menina pica-pua-preto na sua busca por formigas.
A curiosidade da fêmea em relação aos seus observadores.
Revelações rubras e monocromáticas
Com os seus malabarismos e frequentes aparições, o pica-pau-médio (Dendrocoptes medius) foi um dos artistas desta peça fotográfica. A ave aparecia inúmeras vezes nos troncos e por lá permanecia durante algum tempo na busca por seiva e insectos, o que nos permitia alguns momentos curiosos. Ao contrário dos outros primos pica-paus, o tamborilar no tronco das árvores não é o seu forte. Com um aspecto mais "fofinho e arredondado" o pica-pau-médio é menor o que o nosso pica-pau-malhado-grande. O pica-pau-médio não ocorre em Portugal e o seu estatuto de conservação em Espanha é “pouco preocupante”.
Quem está aí do outro lado do espelho?
O pica-pau
verde (Picus sharpei) foi a primeira ave a aparecer para provar a iguarias
das formiguinhas. Pulou de árvore em árvore, espetou o bico nos orifícios para
sacar as larvas, soltando, de quanto em vez, um riso malandro para depois
desaparecer ondulando em voo o seu uropígio de leque amarelo. Em Portugal este
é o nosso maior pica-pau, também conhecido por peto-verde ou cavalo-rinchão, estatuto
de conservação “pouco preocupante”.
O pica-pau-verde no meio da sua aguarela frondosa.
O momento da prospeção e da fome
O som veio dali mas o carreiro das formigas está aqui.
A atenção dos pormenores.
Vamos contar formigas!
Paremos um pouco para ouvir o vibrafone do vento a fazer ondular as árvores solitárias.
Nunca tinha visto este bicho tão perto, tão calmo, a paz.
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Pica-pau-verde em prespectiva |
Atento às movimentações dos seus congéneres.
Na procura da formiga e da larva.
Mais fundo do que a casca da árvore permite.
e por fim, em monocromático selectivo.
Ao postigo espreita o torcicolo (Jynx torquilla)
O nome deste pica-pau é resultante do facto de rodar o pescoço quando se sente ameaçado. Naquele momento, o torcicolo não foi confrontado com qualquer perigo e como tal não exibiu os seus dotes de contorcionista. Todavia, impelido pela sua curiosidade, descobriu uma entrada no tronco da árvore morta, da qual fez quarto alugado e ao postigo controlava os seus vizinhos do bosque que por ali passavam. O torcicolo gosta de alimentar-se no solo onde procura formigas. Quando sobe aos troncos das árvores permanece imóvel, e fazendo jus à sua plumagem críptica, torna-se quase indetectável. Esta espécie imite um canto choroso durante a primavera e é migrante desse a partir da península ibérica para invernar em África. O seu estado de conservação no mundo é pouco preocupante quanto a Portugal é desconhecido.
Que linda janela para um imenso bosque.
Bem podia ser um candeeiro, um marco, o sinal mas não...
Quem vem lá? Ao fundo, a luz de um último reinado!
Para finalizar, comemos bem! Fazendo justiça à excelente e bem abastada mesa de enchidos, presunto, queijos e o bom vinho, que por estas terras degustámos e que sem dúvida recomendamos!
24 de Maio de 2021 - Crémenes, província de León - Espanha.